segunda-feira, 2 de agosto de 2010

De trovas e máscaras

Conheci um carinha muito estranho. Estranho mesmo, desses que você para e pensa "De que mundo veio esse aí?". Aposto até que, em alguns momentos, ele fosse o carinha mais esquisito da Terra. Bem, talvez não chegasse a tanto porque ele não era feio como muitos que a gente vê por aí. Nada, ele chegava a ser bonito sim, não um ator hollywoodiano, mas uma gracinha. Não tinha nenhum problema mental (até onde sei), era comunzinho. Também não era um burro, era na verdade muito inteligente, lia bastante, estimulava a mente... só era um tantinho fechado, então, você demoraria a encontrar a chave certa para o grande cadeado que separava seu cérebro e coração dos olhos alheios. Ah, o cadeado - nele morava toda a esquisitice do sujeitinho, toda minha desaprovação. Ele chamaria tudo isso de timidez, medo de rejeição ou inventaria uma desculpa qualquer se fosse perguntado a respeito. Entretanto, não preciso ouvir as explicações dele para afirmar sem dúvida alguma que o tal cadeado não passa de mania maluca, de coisa de gente que não tem o que fazer, que não vive direito.

Veja você: o carinha, de uns três anos pra cá, vem desenvolvendo trancas e correntes reforçadas para amarrar ao coração. Ele é muito bom nisso, admito, mas é claro que tal habilidade não é nenhuma característica admirável. Tudo começou por culpa, ou melhor, se desencadeou (não o cadeado) com uma mocinha. O carinha nunca foi de reparar muito nas saias que lhe rodeavam, achava que o amor era desperdício de tempo, dinheiro, neurônios e artérias, de modo que vivia dedicado à leitura. Adorava as ficções, se perdia nos becos em que ocorriam os grandes crimes, assistia de perto revelações bombásticas sobre quem seria o assassino; uma vez ou outra mergulhava em longos e detalhados romances limenhos ou agitados e perturbadores contos medievais. Livros lhe bastavam. Até que a mocinha surgiu e dissolveu toda a estabilidade do carinha, que se esqueceu da leitura e virou um medíocre escritor de poemas apaixonados. Ah, eram quase cantigas de amor, ideais irritantes. Saiba, não desprezo a beleza do Trovadorismo, mas é que me incomoda essa dormência típica.

Um dia o carinha ouviu que a mocinha gostava dele. Foi um choque, uma queda de mil metros. Depois, um nadar num lago calmo, transparente, um repousar sobre nuvens. A sensação de alcançar o inalcançável não era mais nada senão sublime. Ele precisava falar com a mocinha, abrir seu coração até então livre dessas preocupações e viver esse sentimento, namorá-la, noivá-la, desposá-la e matá-l... ahm, morrer junto dela quando fossem dois velhos decrépitos. Tinha tudo planejado. Marcou um encontro, se afundou em perfume, vestiu a melhor roupa ou a que transparecesse menos desespero. A camiseta verde predileta não faltou, o verde lhe acalmava. Visto de longe até se mostrava seguro, mas então a mocinha chegou, as pernas tremeram, a pele branqueou, a respiração faltou, bateu-lhe um frio polar e a voz, embargada e gaga soltou entre soluços: também gosto de você. Mais tolo impossível, o carinha saiu correndo de medo e nem sequer ouviu a resposta da mocinha.

Um amigo o avisou, "A mocinha quer lhe falar, ligue pra ela". Quem disse que ele ligou? Ainda tinha medo. Passou a fugir dela na rua, não atender ao telefone, evitar lugares que ela gostava. Toda vez que pensava na possível resposta - sim ou não, tanto faz, porque o não destruiria seu mundo antes sólido, mesmo que o sim fosse a opção mais provável - toda a gama de sensações horrorosas voltava ao corpo do carinha e lhe arrancavam a coragem.

Desde então, começou a aprimorar a arte de chaveiro, ou dono de uma empresa especializada em segurança cardíaca. Parou de tomar decisões ou iniciativas, qualquer coisa que precisasse de uma resposta. Perdia a hora nos lugares por medo de pedir a alguém que tivesse um relógio. Perdia o ônibus por medo de dar sinal ao motorista. Perdeu várias oportunidades de emprego porque todas elas eram precedidas por uma entrevista. Há pouco tempo fiquei sabendo que ele se apaixonou novamente, outra mocinha linda, mas parece que ela tem olhos para todos os outros carinhas do mundo, menos para ele. Nem preciso dizer que ela sequer sabe da existência desse sentimento, já que o carinha não ousa revelar, dar uma dica que seja. Esconde tudo bem no fundo e finge que nada existe, enquanto escuta alguma música dramática.

O quão absurdo é isso? Não sei... tenho medo de responder.