quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Impulso


Entre todas as coisas passíveis de medo para Dona M, a mais insuportável era filhotes de gato. Filhotes em geral lhe causavam algum asco. Os de rato eram horrorosos, os de cão pareciam ratos crescidos; mas a simples ideia de imaginar um gatinho rosáceo, sem pêlos, com olhos ainda fechados e miado agudo parecia aterrorizar Dona M descomunalmente. Costumava contar um episódio de infância para justificar esse pavor: criada numa fazenda, vivia em meio a todo tipo de bicho - vaca, cavalo, porco, sucuri, bem-te-vi e, obviamente, gato, animal que se reproduz quase como coelho no interior - e estava habituada a todos eles. Eis que numa noite uma gata prenha resolveu pular a janela do quarto de Dona M e se acomodar em sua cama, ignorando o fato da dona do espaço estar bem ali, debaixo dos lençóis. Dona M acordou aos saltos com um despertador natural diferente dos berros comuns de sua mãe: um monte de filhotes de gato com seus miadinhos finos. Sua irmã, que chamarei aqui de Dona G, correu para ver a cena, quase rolou em gargalhadas e, não menos satisfeita, pegou um dos gatinhos e jogou nas costas de Dona M, que saiu em disparada pela casa, gritando, chorando e contraindo o corpo na tentativa ineficaz de fazer o bichano cair. Desde então, a memória do felino lhe trazia uma série de sensações monstruosas. Foi ao psicólogo, psiquiatra, centros espíritas, centros de macumba e só encontrou uma solução no centro da cidade: comprou longas agulhas, lã e começou a tricotar como terapia.

Sr. M, marido de Dona M, vendo a proliferação de roedores no bairro e a solidão do filho único do casal - pequeno demais para receber um codinome e péssimo para fazer amizades -, chegou em casa com um lindo filhote de gato siamês, tão lindo que até parecia real. Não, ele não comprou um gato de verdade e nem esperava que um bicho de pelúcia fosse capaz de matar ratos. Era só uma medida simbólica - e estúpida, eu sei - para que o filho se sentisse acolhido por um amigo e útil no extermínio de pragas sobre a Terra. E deu certo. A princípio. O menino brincou por toda manhã e tarde, liquidou centenas de ratões imaginários, dentuços, de garras compridas e mais afiadas que a melhor das facas, uns muito gordos e sujos, outros esguios e com expressão de falsa superioridade (que lhe lembrava certa professora de geografia). Era o rei do mundo, garantia a supremacia humana frente aos roedores imundos e espalhadores de peste.

Dona M trabalhava fora o dia todo. Chegou à noite e foi logo se deitar. Estava exausta, o serviço exigira muito dela. Chegou a pegar as agulhas e tricotar um pouco para relaxar, mas o cansaço era tamanho que largou a distração sobre o criado-mudo e caiu no sono. Logo depois de Dona M adormecer, seu filho correu para o quarto dos pais carregando algo debaixo do braço. Queria mostrar para a mãe o novo amiguinho. Pulou na cama, pôs o gato de pelúcia na barriga de Dona M (que já não dormia de bruços por medo de que outro bichano se instalasse em suas costas) e disse: "Olha, mãe, esse é meu gato! Ele quer te conhecer! Fala com ela, gatinho! MIIIAU!"

O primeiro impulso de Dona M foi esticar o braço esquerdo, pegar uma das agulhas de tricô e perfurar repetidas vezes o ser que emitiu aquele ruído devastador.