sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre e sob cores e luzes

"Ao incidirem sobre os vidros coloridos da porta da sala, os raios do sol tingiam o chão, teto, paredes e o que mais atravessasse seu caminho. Tudo naquele ambiente parecia magicamente preenchido por verde, bordô, amarelo e violeta. O correr das horas arrastava as luzes por todo canto; a cortina de miçangas faiscava no fundo da sala, balançando ao sabor de uma brisa suave que mergulhava pelas janelas ao redor e espalhava o cheiro das rosas brancas do jardim; os anjinhos de porcelana sobre a mesa produziam sombras que lhes davam impressão de movimento, como se todos dançassem felizes por entre castiçais. O sentimento que invadia os olhos dos que observavam aquele balé de luzes e cores era o de uma vivacidade universal. Não era só a sala - o mundo todo luzia."

Como contar a forma de um sentimento sem dizê-lo? Falar sobre o que provoca e como reverbera? Das velhas cartas que trocavam em tempos distantes, uma sempre a marcou. Todas eram lindas, verdadeiras, de uma leveza que jamais vira. Entretanto, uma delas era mais especial que as outras por ser a mais sutil, particular e, descobriu tempos depois, a última carta que saiu das mãos dele. Um estranho veria apenas meia dúzia de linhas, a descrição de um espaço, algum encanto, mas nada grandioso... e como lhe parecia prazeroso imaginar um terceiro subestimando tudo aquilo que, para ela, jorrava por cada letra!

Ela o amava de um jeito inconcebível, puro como as cartas e graças a elas. Os homens daqueles dias remotos não eram feitos de roupas bem cortadas ou um ramalhete de flores, tampouco de uma beleza padronizada. Sua composição era toda palavras. Mulheres têm, cada uma a seu modo, olhos e ouvidos sensíveis a tudo que é poesia e, assim sendo, cabe a cada homem encontrar a chave certa.  A vida sem o escritor de cartas dissolveu-se em vazio. Não sabia bem o que aconteceu na época e já não tinha acesso aos fatos. Sabia que sua caixa de correspondência nunca mais recebeu uma visita ilustre, apenas algumas aranhas.

Como contar a forma de um sentimento sem dizê-lo? Resolveu, muitos anos depois da última carta, escrever uma resposta que jamais seria enviada:

"O que se via ali hoje não era a mesma cena. Não havia cor ou luz; apenas uma porta de vidros quebrados, algumas tábuas pregadas que lhe cobriam até a metade; a pouca luminosidade que alcançava a sala quase não era suficiente para distinguir os móveis velhos ou as grossas camadas de pó e abandono sobre eles. As miçangas da cortina se espalhavam, tristes, pelo chão. Na mesa, cacos de porcelana que um dia foram anjos. Pobres anjinhos, o que foi feito de vocês? Por que não lhes é dada mais a chance de dançar sob cores verdadeiras? Muito tempo se passou e só Deus sabe como o tempo é cruel. Mesmo assim, qualquer um que entra nessa sala sente que ela guarda algo maior. Qualquer um pode afirmar que, ainda que quase ocultos sob os anos, resquícios de beleza se espalham pelo ar. Janelas abertas; o cheiro das rosas brancas continua vivo e doce."

domingo, 8 de janeiro de 2012

Motivos pra ficar

Andando numa rua de pavimentos redondos, os dois meninos brincavam de estalar folhas secas ao pisá-las.

- Meus pais querem se mudar.
- É? Por quê?
- Dizem que se cansaram dessa cidade, que aqui não tem nada bom.
- Como assim não tem nada bom? Tem a sorveteria--
- Calda de caramelo!
- Prefiro a de menta.
- Eca, parece pasta de dente!
- Eu gosto de pasta de dente.
- Sua mãe já te disse pra parar com isso.
- Tá, tá, mas tem a sorveteria, os bombons da Dona Marilza, a praça e os brinquedos da praça, os dinossauros do museu, o t-rex!
- A Laurinha ...
- Coitado, com aqueles bracinhos... o que tem ela?
- Nada não.
- Então por que você falou dela?
- Nada, já disse!
- A gente aqui falando de dinossauro e você botando menina no meio?!
- Não, é que... ah, me deixa.
- Pra onde vocês vão?
- Nem sei.
- Lá não vai ter o carteiro careca.
- Vou ter que arrumar outro carteiro pra roubar o boné.
- Mas não vai ter graça porque ele não vai ser careca e não vai correr feito doido atrás de você.
- E não existe mais nenhum carteiro careca no mundo inteiro?
- Existir até pode, mas um com verrugas na careca eu duvido muito.
- Droga.
- Será que tem praia? Ia ser legal ter praia, aí eu ia pra sua casa nas férias e a gente jogava bola na areia.
- E nadava.
- E comia milho.
- Mas milho tem aqui, né.
- Viu, tem muita coisa boa aqui.
- É que eles querem outras coisas boas que aqui não tem.
- Tipo o que?
- Meu pai vive reclamando que o trabalho dele é uma merda, ele não gosta quando eu falo merda.
- Merda por quê?
- Ele diz que é feio, que não é coisa de criança falar.
- Nããão, tô falando do trabalho.
- Ah, ele ganha mal.
- Só mudar de emprego.
- Ele diz que não tem "nada da altura dele" aqui.
- Manda ele mudar de altura.
- Ahm?
- O problema não é com a cidade, é com ele.
- Aff, você não entende nada dessas coisas de adulto.
- Nem quero mesmo. Me dá seu videogame?
- Que?
- Me dá seu videogame de recordação.
- Claro que não!
- Se fosse a Laurinha pedindo...