domingo, 4 de agosto de 2013

Cemitério de sonhos

Poderia ter despejado logo o conteúdo da garrafa que trazia na mão esquerda, mas preferiu esperar. Sob os pés descalços, uma areia muito fina, carmim, que se alongava por todos os lados até o horizonte e fazia tudo parecer um oceano de sangue. Sobre a cabeça, o céu de todas as cores imagináveis, cada cor vinda de um dos que ali pisaram antes. Ao redor, um ar quente, quase sufocante. Ela sabia que deveria ir embora rápido, sentia a morte naquele lugar como se pudesse tocá-la. Bem, é o que se espera de um cemitério, ainda que aquele não fosse um cemitério comum. Nada de corpos putrefatos ou esqueletos enterrados em covas cobertas por terra, concreto e mármore: lá ela afundava os pés na areia fina e carmim do cemitério de sonhos.

Não houve tempo para despedidas, um último olhar na cama de um hospital ou qualquer fiapo de esperança: o atropelamento matou o marido de Moira instantaneamente. Seu último laço se perdeu e agora estava completamente sozinha no mundo. Os minutos pareciam horas e os dias, uma eternidade. Aos poucos, Moira perdia o gosto pelas coisas. O prazer da leitura, de uma boa música, das viagens frequentes, do cinema, das noites de dança. Era como se tudo só fizesse sentido a dois ou, caso não fosse feito a dois, se houvesse um momento posterior no qual cada um compartilhasse com o outro as experiências obtidas individualmente. As noites eram ainda mais longas que os dias e toda vez que caía no sono atribulado de sempre, mergulhava em algum sonho perturbador.

Havia gente por todo cemitério e de todo tipo. Uma adolescente grávida, aos prantos, despejava no oceano de areia o líquido leve e violáceo que trazia em sua garrafa. O carmim bebia tudo, furioso. Logo que a última gota foi derrubada, uma mancha violeta surgiu no céu, vívida e brilhante. Um homem jovem, paraplégico, também derramava o líquido de sua garrafa, azul cobalto e espesso, mas engolido facilmente pela areia. Sem demora uma mancha azul muito intensa brotou no céu. Garrafas esvaziadas, seus donos pareciam se esquecer do mormaço do lugar: caminhavam encolhidos, como se enferrujados, tremendo de frio. E a cada instante um novo borrão se imprimia no firmamento como uma certidão de todos os sonhos um dia abandonados.

Moira observava cada sujeito que se desfazia de seus desejos e achava tudo uma grande loucura. Eles não tinham uma real motivação para permitir que seus sonhos escorressem assim, de forma tão simples. Sentia que seria capaz de mergulhar no oceano carmim e recuperar cada gota, dar de volta a cada um a vida que ansiavam, por maiores que fossem as adversidades. Olhando sua própria garrafa, cheia de um líquido verde elétrico, continuou esperando.

Acordou cedo naquele dia e desesperada por um copo de água e um pouco de ar, tamanho foi o calor que sentiu. A cidade amanheceu muito quente e aquilo estalou na cabeça de Moira como a lembrança fresca de uma coisa qualquer. Abriu as janelas e olhou para cima: tantas nuvens e o céu completamente alvo, como um bloco de folhas novas, como uma certidão em branco. Resolveu ir ao cinema e comprar uns discos novos.