segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Das filosofias paternas

Quando eu era pequena, meu pai vivia me questionando as coisas, desde qual é a capital do Azerbaijão até a hora certa. Fazia isso sempre, toda hora, provavelmente para me aguçar as vontades de descobrir o mundo, as verdades, aumentar a bagagem de conhecimento. Nessa época, eu tinha a mania de responder tudo no chute e, quando não era chute, era por força do hábito. Assim sendo, toda resposta que eu dava começava com um "Acho que...", sempre, sempre. Meu pai se irritava e dizia: "Esse 'achismo' seu, nunca tem certeza de nada!".

Hoje, fingidamente crescida e independente psicologicamente, continuo com os "achismos". As perguntas feitas, é claro, são outras. Talvez meu pai me perdoasse se soubesse quais são, já que suas respostas não estão nos livros ou num relógio, mas sim no coração humano, nos desejos de uma mente desconhecida.

E eu achando... tsc, tsc.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Reunião

Passam horas, correm dias
diamantes intocáveis
impalpáveis são os que quero roubar
Rouca a voz do pensamento
folhas viajam no vento
como tudo que preciso armazenar
Se pudesse por num frasco
verde, nuvem, chuva, abraço
e esses olhos que me arrancam alma, chão
Paro, peço, posto o passo
solto as notas ao acaso
deixo o resto, enceno um gesto à solidão

E entendo que você
não possa entender
o que caminha perto, incerto sobre o meu querer
Encontro salvação
na minha confusão
no frasco interno em que guardo a imaginação
E é nela, bem assim,
que vai meu eu em mim
se equilibrando em cinco, seis sentidos e sinais
Os ares da estação
refrescam a ilusão
de não haver impulsos, só tomadas racionais.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Evergreen

Entre cigarros e bebidas, componho essas frases um tanto tortas no papel. A leve embriaguez não me permite atenção total, a fumaça me dispersa... fujo de qualquer organização e completo meu vazio nas distrações, no que não me deixa focalizar e refletir. Me esforço, bebo mais, fumo mais, porém tudo se faz espelho sujo, envolto por uma grossa neblina que, de repente, se dissolve, some, torna a imagem o mais limpa possível. Se fechar os olhos fosse uma solução... mas o que vejo fica ainda mais nítido quando só minhas memórias atuam.

Bem ali, o reflexo se configura, quase deixa o mundo por trás da porta do guarda-roupa e me faz pensar que tudo está bem outra vez. O quarto muito bem arrumado, uma colcha verde sobre a larga cama. Ah, como ela gostava de verde! Os lençóis, as toalhas, bibelôs, presilhas, jóias, tudo tinha algum verde. Em nosso primeiro jantar, restaurante muito fino, fiz questão, ela usou um vestido longo de veludo verde musgo - bendito tecido, deslizava sobre seu corpo a cada passo dado, oferecendo-me as curvas da cintura e dos quadris, a forma dos seios, o resvalar das pernas. Céus, é como se ela estivesse aqui, agora! Como se eu pudesse respirar tão fundo que a fumaça se transformasse em lavanda, perfume que me deixava perdido em seu pescoço; como se minhas mãos, que agora tocam o papel, tocassem aqueles longos cabelos, desfazendo qualquer penteado para deixá-los livres, pendendo conforme os desmandos do vento. Nesses momentos, meu corpo já não me responde, acredita na ilusão e se manifesta - é aí que mora meu sofrer.

Saio pela cidade à noite, frequento os piores bares e cafés, vejo os tipos mais deploráveis e me destôo de todos eles. Visto-me muito bem, como sempre fiz, caminho como um nobre sobre os restos da plebe e, muito facilmente, atraio os olhares que tanto desejo. Minto, não desejo - preciso. Não me demoro muito até convencer uma mulher qualquer a sair por aí, lugar que não seja meu lar, o lar eterno de minha amada. Não perco mais tempo em conhecê-las, saber o nome, idade, onde vivem, o que querem. Perco minha razão levando-nas para cama, depois de algum cigarro e bebida. Apago facilmente os rostos, os cheiros, as texturas de todas elas, tanto por não terem a menor importância, tanto porque fecho os olhos. No repousar das pálpebras, encontro minha bela, só minha, linda como sempre foi, seu rosto, seu cheiro, sua textura. Volto a acariciar sua face, beijar seus lábios vermelhos e lânguidos, sua pele lisa e translúcida, tomá-la como minha e torná-la minha, parte de mim, prolongamento do meu corpo em seu corpo, peças de um encaixe magistral. E quanto mais ela se abre para mim, mais me fecho nela, mais me movo, sempre e muito e tão mais rápido que posso, na esperança de morrer de prazer e dor, morrer, tão somente. Morro, mas morro tão longe de meus anseios anteriores porque abro os olhos depois da morte. Volto à vida, ao real, à mulher que não é minha pequena, às sensações que não me pertencem. Me desfaço em desespero por ter matado o momento, desfeito a ilusão. Minha amada some e não me resta outra escolha a não ser fazer com que nasça mais uma vez.

Nessa busca por princípio e fim, chego a mais importante conclusão: se você nasce em minha morte, fecharei mais uma vez os olhos. Definitivamente. Darei a você, pequena, a maior prova de meu amor: a imortalidade!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Mocassins

Parados no ponto de ônibus estávamos eu - já sem esperanças sobre a vinda de minha condução e um tanto apreensiva quanto a figura do elemento ali presente - e um mendigo, desses com cara de velho fugido do hospício, além, é claro, das roupas e sujeira típicas. Ele não se parecia com um psicopata ou bandido procurado, mas tinha aquele olhar pesado, fixo, de gente que assistiu todo tipo de sofrimento e se largou sob a vida, inerte. Eis que o maltrapilho, antes sentado em jornais amarelados espalhados pela calçada, levantou-se e sentou-se ao meu lado no abrigo, se esforçando para emprestar ao rosto enrugado ar cortês e imponente. Antes que o assombro, medo ou outro sentimento comum me assolasse, o velho disparou a falar de um caso antigo.

Dizia ele que, logo que se mudara para as ruas - a teoria sobre o hospício se fazia mais sólida -, começara a sentir uma dor insuportável na nuca, "bem nesses carocinhos, sabe?", o mendigo apontava atrás da cabeça, onde terminava sua cabeleira branca e gordurosa. O sofrimento físico o impossibilitara de erguer o rosto por um bom tempo. Como os olhos só alcançavam uma área pequena, o velho passara a treiná-los de modo a reconhecer possíveis doadores de uma esmola generosa através dos sapatos. Postara-se na escadaria de uma grande igreja nas redondezas, "O povo é mais generoso quando precisa rezar um monte de terços, acham que dar dinheiro diminui a penitência", afirmava com voz de conhecedor das fraquezas humanas. O velho contava que, em certa época, conseguira arrecadar quantia significativa para um mendigo só de estender a latinha para o par certo de pés. Normalmente se apegava mais aos sapatos masculinos bem lustrados, cadarço com nó milimetricamente bem feito, aos scarpins bicudíssimos das senhoras e aos saltos grossos e recobertos por tiras das moças de pés delicados e canelas lisinhas - notei aí uma ou outra risadinha no velho, as vistas deviam compensar até demais a limitação do pescoço. O mendigo não fazia questão de erguer a latinha para chinelos simples, pés rachados e sujos. Até escondia as moedas se via gente descalça ou de solas furadas, "Vai que é um ladrão safado?!".

Num dia de grande doação, algum feriado santo ou coisa do tipo, depois que todos já tinham ido embora, surgiu na frente do velho um belíssimo par de mocassins, couro legítimo, uma grande fivela de ouro na parte de cima. Pronto para ganhar mais uns trocados, o velho estendeu a mão e esperou. Os mocassins se demoraram e foram embora correndo, levando a latinha que tilintava.

Meu ônibus chegou e nele vim pensando na porção de ladrões de mocassim que já avistei por esses planaltos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Qual é o problema?

Você aceita quando te dão o troco errado - ah, não foi por mal
quando te esbarram com força, derrubando tuas coisas
quando pisam no teu pé
passam na tua frente
falam mal de ti.

Te sujam, xingam, cospem, mexem nas tuas coisas, mexem com o teu caráter, te subestimam, humilham, trocam, limpam os sapatos com tuas lágrimas e dão lustre com tuas faces. Enfim, se esquecem do teu nome, a única coisa realmente tua que te restava, palavra inegável da tua identidade.
E o que tu fazes? Nada, não foi por mal.

- Como é, Juliana?

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

De trovas e máscaras

Conheci um carinha muito estranho. Estranho mesmo, desses que você para e pensa "De que mundo veio esse aí?". Aposto até que, em alguns momentos, ele fosse o carinha mais esquisito da Terra. Bem, talvez não chegasse a tanto porque ele não era feio como muitos que a gente vê por aí. Nada, ele chegava a ser bonito sim, não um ator hollywoodiano, mas uma gracinha. Não tinha nenhum problema mental (até onde sei), era comunzinho. Também não era um burro, era na verdade muito inteligente, lia bastante, estimulava a mente... só era um tantinho fechado, então, você demoraria a encontrar a chave certa para o grande cadeado que separava seu cérebro e coração dos olhos alheios. Ah, o cadeado - nele morava toda a esquisitice do sujeitinho, toda minha desaprovação. Ele chamaria tudo isso de timidez, medo de rejeição ou inventaria uma desculpa qualquer se fosse perguntado a respeito. Entretanto, não preciso ouvir as explicações dele para afirmar sem dúvida alguma que o tal cadeado não passa de mania maluca, de coisa de gente que não tem o que fazer, que não vive direito.

Veja você: o carinha, de uns três anos pra cá, vem desenvolvendo trancas e correntes reforçadas para amarrar ao coração. Ele é muito bom nisso, admito, mas é claro que tal habilidade não é nenhuma característica admirável. Tudo começou por culpa, ou melhor, se desencadeou (não o cadeado) com uma mocinha. O carinha nunca foi de reparar muito nas saias que lhe rodeavam, achava que o amor era desperdício de tempo, dinheiro, neurônios e artérias, de modo que vivia dedicado à leitura. Adorava as ficções, se perdia nos becos em que ocorriam os grandes crimes, assistia de perto revelações bombásticas sobre quem seria o assassino; uma vez ou outra mergulhava em longos e detalhados romances limenhos ou agitados e perturbadores contos medievais. Livros lhe bastavam. Até que a mocinha surgiu e dissolveu toda a estabilidade do carinha, que se esqueceu da leitura e virou um medíocre escritor de poemas apaixonados. Ah, eram quase cantigas de amor, ideais irritantes. Saiba, não desprezo a beleza do Trovadorismo, mas é que me incomoda essa dormência típica.

Um dia o carinha ouviu que a mocinha gostava dele. Foi um choque, uma queda de mil metros. Depois, um nadar num lago calmo, transparente, um repousar sobre nuvens. A sensação de alcançar o inalcançável não era mais nada senão sublime. Ele precisava falar com a mocinha, abrir seu coração até então livre dessas preocupações e viver esse sentimento, namorá-la, noivá-la, desposá-la e matá-l... ahm, morrer junto dela quando fossem dois velhos decrépitos. Tinha tudo planejado. Marcou um encontro, se afundou em perfume, vestiu a melhor roupa ou a que transparecesse menos desespero. A camiseta verde predileta não faltou, o verde lhe acalmava. Visto de longe até se mostrava seguro, mas então a mocinha chegou, as pernas tremeram, a pele branqueou, a respiração faltou, bateu-lhe um frio polar e a voz, embargada e gaga soltou entre soluços: também gosto de você. Mais tolo impossível, o carinha saiu correndo de medo e nem sequer ouviu a resposta da mocinha.

Um amigo o avisou, "A mocinha quer lhe falar, ligue pra ela". Quem disse que ele ligou? Ainda tinha medo. Passou a fugir dela na rua, não atender ao telefone, evitar lugares que ela gostava. Toda vez que pensava na possível resposta - sim ou não, tanto faz, porque o não destruiria seu mundo antes sólido, mesmo que o sim fosse a opção mais provável - toda a gama de sensações horrorosas voltava ao corpo do carinha e lhe arrancavam a coragem.

Desde então, começou a aprimorar a arte de chaveiro, ou dono de uma empresa especializada em segurança cardíaca. Parou de tomar decisões ou iniciativas, qualquer coisa que precisasse de uma resposta. Perdia a hora nos lugares por medo de pedir a alguém que tivesse um relógio. Perdia o ônibus por medo de dar sinal ao motorista. Perdeu várias oportunidades de emprego porque todas elas eram precedidas por uma entrevista. Há pouco tempo fiquei sabendo que ele se apaixonou novamente, outra mocinha linda, mas parece que ela tem olhos para todos os outros carinhas do mundo, menos para ele. Nem preciso dizer que ela sequer sabe da existência desse sentimento, já que o carinha não ousa revelar, dar uma dica que seja. Esconde tudo bem no fundo e finge que nada existe, enquanto escuta alguma música dramática.

O quão absurdo é isso? Não sei... tenho medo de responder.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Sobre o ideal.

Ah, você sabe que não era pra ser assim. Não, você não sabe. É óbvio que não sabe, já que não existe. Se você existisse saberia bem do que estou falando. Se você existisse, em resumo, eu não estaria dizendo essas palavras jogadas. Talvez eu dissesse, sim, porque em qualquer universo minha mania de dizer coisas aleatórias seria mantida, ah, minha identidade! Entretanto, você logo daria um jeito de me calar, balançando a cabeça de olhos fechados e dizendo "Bobinha, isso só existe nessa sua imaginação fértil. Eu estou aqui e sempre vou estar.". No final, riríamos por horas sem motivo algum, sentados um de costas para o outro, um apoiando o outro. Era bem o que faríamos, né?

Se você existisse, estaríamos agora conversando alguma bobagem. Sim, porque nós só conversaríamos bobagens, salvo exceções de nossas primeiras conversas. Normalmente é assim, o conhecimento se dá aos pouquinhos e sempre intercalado a fatos que acrescentam algo a quem escuta. Começaríamos assim, com assuntos cultos, comentários bem embasados, novidades interessantíssimas. Depois, quando estivéssemos envolvidos num afeto inconcebível, falaríamos só do que não cai nos vestibulares, não sai nas revistas e não é de discussão geral.

Se você existisse, nos veríamos todos os dias. Tudo bem, seria por obrigação escolar, mas o faríamos por puro gosto. Fugiríamos da sala em todos os intervalos para trocar cinco, seis palavras, risinhos, comentar sobre a tolice dos novatos e dos professores de geografia. Claro, porque quem decora o nome de rochas não poderia ser muito são. Ah, sim, não nos esqueceríamos dos recreios - "Recreio é coisa de criança, diga intervalo, bobinha." -, que seriam a melhor parte do dia: não diríamos quase nada, só o necessário, resposta às perguntas dos colegas, às cobranças de animes, mangás e pendrives; os vinte minutos seriam gastos unicamente com o desfrutar de companhias, mãozinhas segurando os ombros um do outro e uma troca de olhares tão sem sentido que faria todo o sentido do mundo.

Nos fins de semana sairíamos com nossos outros mil amigos (mil amigos, mil afazeres, quanta coisa teríamos!), veríamos filmes que ninguém vê, iríamos em shows muito mal frequentados só para apontar aberrações adolescentes, esquecendo que seríamos as maiores aberrações entre todas as outras. Correríamos como idiotas pela rua, apostando corridas sem propósito e sendo frequentemente quase-atropelados. Dividiríamos o lápis, o caderno, o violão, a voz nos duetos, a água suspeita comprada num pseudo-parque que mais pareceria um recanto de abelhas - e passaríamos longe delas, desviando nosso caminho em metros. Antes de encerrar o dia, nos abraçaríamos longa e intensamente. Diríamos talvez a maior bobagem do dia ainda abraçados, simulando um casal feliz em meio a vendedores, velhinhas cansadas e flautas andinas. Até pensaríamos a respeito: "E se fôssemos um casal?". Logo, riríamos abraçados da nossa estupidez. Cada um seguiria seu caminho, feliz por ter a droga de amizade mais maluca e gostosa que poderia existir.

Isso, se você existisse. Não, você não existe, e não pode dizer o quão bobinha sou por me matar de saudade de alguém que nunca existiu. Se desenhos falassem, se paredes falassem, se eu mesma falasse, talvez.

- Tá sozinha?
- Sim, como sempre. :)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Trocado

Lá está ele em sua antiga estupidez de sempre. Poltrona rasgada, postura humilhante, caneca verde, sempre verde, café fraco, pão duro de um dia qualquer pela preguiça de sair e comprar algo de verdade para por na boca. Claro, porque ele quer mesmo é por na boca a boca dela, morder seus lábios como quem morre de fome, mas não abandona o prazer do atraso, das porções pequenas. Delicia-se tanto com o toque, com os movimentos suaves, com o roçar de narizes, cílios e mãos mais atrevidas que até se esquece que imagina tudo e que o pão velho não é aquela boca e que o calor da caneca de café não é a nuca de sua pequena. Ao despertar do devaneio ri-se todo, checa se não há algum espectador para suas sandices, toma outro gole do café doce como açúcar puro e pensa em outra coisa a se pensar.

Fica naquele teatro patético por séculos, perdendo o olhar pela parede e o tempo de descanso, de um livro, música ou passeio com os amigos. "Você sumiu!", "Por onde se meteu esse tempo todo?", "Ei, podemos sair essa tarde, ver um filme e...". A resposta, sempre a mesma: falta de tempo, desânimo, depois nós marcamos, tenho um compromisso. O compromisso, o grande compromisso com sua pequena. Ele costumava levá-la para comer alguma coisa, mas ele mesmo mal mastigava a própria comida; queria mais tempo para vê-la comendo, lenta como só ela, segurando copos e talheres com delicadeza inigualável e atritando os lábios após cada pouquinho de suco. Às vezes ele insistia que bebesse mais um pouco, um ou dois copos, só para rever o ritual. Depois saiam para caminhar, se sentavam em algum banco e ficavam conversando por horas e horas. Algumas vezes eram surpreendidos por uma chuva realmente inesperada, mas não se importavam e continuavam a conversa, encharcados da cabeça aos pés. Em outras, se falavam deitados sob um grande ipê amarelo. Ele aproveitava a desculpa de tirar pétalas que caiam nos cabelos dela para afagar-los demoradamente, como um pobre Bentinho que se deleita com os cabelos de sua Capitu. A lentidão intrigava a pequena, que se virava e o encarava com olhos de sermão mas, logo depois, abria um sorriso mais radiante que o sol poente entre nuvens alaranjadas que compunha o cenário. "Já é tarde, preciso ir.", a despedida se fazia à noite, numa ruazinha desconhecida e deserta. Por mais que devessem partir, atrasavam ao máximo o fim do dia, um segurando o braço do outro, inventando assuntos aleatórios que prolongassem a última conversa. E, então, a hora tão esperada chegava: sabe-se lá a razão, as mãos dos dois se esbarravam e não se soltavam mais. Os olhares se cruzavam, tímidos mas fixos, implorando pelo que viria. A mão dele que não se ocupava da dela tocava levemente seu rosto, têmporas, as covinhas que se formavam com o sorriso radiante; parava na nuca e, agora, segurava forte, medo de perder aquele instante tão valioso. Os perfumes se misturavam, as respirações se aproximavam, os olhinhos dela se fechavam apertadinhos, esperando pelo óbvio utópico.

Ele se assusta de repente com o barulho da caneca verde se quebrando no chão.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Algo no caminho

"I saw you were sick and tired of my wrong turns
if you only knew the way I feel
I'd really love to tell you but I can never find the words to say
and I don't know why."

Procurava uns textos meus escritos de um ano para cá que sabia que ainda existiam mas não sabia exatamente onde. Os mais genéricos - reflexões, lembranças e outras bobagens que postava em um dos mil blogs que tive - encontrei com muito custo numa pasta do computador, escondidos sob uma estúpida senha que, de tão óbvia, parecia improvável. Eram os textos mal-sucedidos, saiba, não por não terem leitores (quisera eu), mas por terem leitores medíocres. Grande parte dos textos, contudo, ainda mora num caderno muito bem camuflado entre livros velhos. São os mais antigos quando se considera minha variação de sentimentos. Ah, eles sim são realmente bons, bons para mim, é claro, porque não os fiz para você, leitor. A maioria do caderno relata passagens do dia-a-dia, uma ou outra transformada em conto, tudo muito interno, muito codificado, o que tira toda a graça da leitura de quem desconhece o que ali se encontra. Lembro-me agora só de um ou dois textos quase explícitos e sei que devo me livrar deles.

Começo a chegar onde quero. Logo que pensei nesse texto, recordei uma carta/bilhete que escrevi há pouco mais de um ano, endereçada a um amigo. Nela, as palavras fluiam, caíam soltas nas frases e se organizavam quase que por instinto. Não pretendiam ser bonitas, tocantes ou chocantes, queriam mesmo é ser verdadeiras, transparentes como um lago raso e calmo - a situação não exigia nada além disso.

Me recordo, então, dos tempos em que os discursos vinham fáceis, sem programação. De quando morria de medo de tudo mas nunca exitava. Hoje já não há medo, há só o excesso de planejamento. É como se os textos precisassem sempre ser rascunhados, apagados, passados a limpo e tudo de novo toda vez que me lembrasse. Nunca está bom, até que tudo vai para o lixo.

É fácil deduzir que não são só os textos.

"I could never seem to say the things I needed to
on a day like today no other words would do."
Trechos de On a day like today - Keane.