sexta-feira, 29 de julho de 2011

Lapsos - parte I

- Hoje, quatro de dezembro, 8h22min. Primeira gravação do dia. Paciente nº 0026. Bom dia, como vai?
- Acho engraçado perguntar a um número como ele está. Me sinto leve.
- Muito bem... como tem passado as noites?
- Mal, como sempre.
- Mesmo com os remédios que lhe receitei?
- Não tomo os remédios.
- ... por que não?
- Você estudou durante anos a mente humana em toda sua complexidade. Acredita mesmo que um comprimido seria capaz de dominar pensamentos?
- É um tratamento como outro qualquer. Agora, veja bem, estamos aqui hoje porque você escolheu se consultar, você escolheu se tratar. Essa vontade de alcançar absoluta sanidade partiu de você, o que já prova que algo é capaz de dominar seus devaneios. Os remédios são aliad...
- Aliados... você diz como se fossem meus amigos, ou melhor, como se fossem militantes numa guerra!
- Sim, não deixa de ser uma guerra.
- Guerras pressupõem ausência de vencedores e perdedores, doutor. Eu e minha mente não nos combatemos. Ela é líder, ditadora suprema, dona de mim. Sou o populacho sem voz, seguidor submisso, servo. Estou aqui hoje por puro capricho dela.
- ... pois bem, podemos começar?
- ...
- Por onde quiser.
- Viro as pessoas. Me transformo nelas. Qualquer uma, qualquer situação. Agora sou eu, depois... já nem sei quem sou, o que sou. Me levanto cedo, boto uns chinelos e vou pra padaria. Nem pego outra roupa porque durmo de camiseta e calça, pijamas são... não sei, organizados demais. No caminho, esbarro numa mulher que anda apressada pela calçada. Os papéis que ela carrega dentro de uma pasta voam por todo lado. E então sou ela, recolhendo os papéis, formulando ofensas pro homem que me esbarrou, caminhando com urgência. Meu celular toca, atendo e ouço meu chefe gritando, implorando pelos relatórios que fiquei de entregar, dizendo que me põe na rua se eu não chegar em dois minutos. Ouço o barulho oco dos meus saltos quadrados batendo no chão, clac-clac-clac-clac-CLAC, um dos saltos quebra, torço o pé, sinto cheiro de pão... e então sou eu de novo, na padaria, a atendente perguntando quantas colheres de açúcar quero no meu café. "Nenhuma", sempre respondo...
- Como isso acontece? Quero dizer, como você vive essa experiência? Como um narrador-observador?
- ... você me escuta? Eu me trans-for-mo nas pessoas. Vejo, cheiro, sinto como elas. Você acredita em espíritos, doutor?
- Possessões?
- Talvez... não nesse sentido que se usa por aí. Coisas malígnas. No de invadir, entrar. Mergulho em qualquer um e passo a pensar por ele...
- Pensar por ele ou como ele?
- Não tenho certeza.
- Continue.
- A mulher da pasta, dos relatórios, do salto quebrado. Meu pé não para de doer.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Portal

Tenho essa mania de me olhar no espelho o tempo todo. Não por excesso de vaidade ou narcisismo. Olho, olho de novo e mais uma vez sem procurar defeitos, qualidades ou mudanças quaisquer. Procuro mais que traços, marcas de expressão, cavo bem mais fundo que a superfície, muito mais abaixo da pele: procuro a mim mesma. Quando te perguntam "Quem é você?", o que você diz? Seu nome, sua profissão, a cor do seu cabelo? Se me perguntam quem sou eu, reluto em responder. Acho que sou bem mais que um nome escolhido pela minha mãe. Sou mais que os ângulos do meu rosto, meus óculos retangulares. A questão é que sou (ou era, até então) alguma coisa escondida de todos e de mim. Corro pro espelho, encaro os dois olhos grandes que me espreitam e espero que eles se movam sozinhos, sem mim, pisquem, digam alguma coisa. Um dia eles disseram. "Entre!"

E entrei. O espelho sólido já não era duro, era água, uma fina parede de água morna e cristalina. O espaço interior não era bem espaço, era um laranja rosáceo infinito, sem noção de profundidade, de teto ou chão. Depois virava um verde bandeira aveludado que se derramava em azul firmamento e se perdia em cores inimagináveis, assim como minha inconstância. Através desse não-espaço fluíam melodias, palavras, pessoas e objetos incontáveis, alguns até desconhecidos ou irreconhecíveis. Era uma mistura de passado, presente e futuro, todos ao mesmo tempo, já que tempo ali não havia, e tudo jorrando aos montes sobre mim e ao meu redor. Aquela confusão me bagunçava a mente e, quanto mais embaralhada ficava minha consciência, ainda mais confuso o não-espaço se configurava. Meu âmago implorou por ordem. Tudo fez silêncio e se apagou.

Agora, o não-espaço era muito mais nada, muito mais não, como se eu não estivesse ali. Talvez não estivesse mesmo fisicamente, só num entendimento líquido. Descobrindo a pergunta certa, obteria todas as respostas sobre minha vida, futuro, anseios e medos. Saberia quem eu sou com um único desejo. Desejo.

Quando dei por mim, estava em frente ao espelho, encarando novamente meus dois olhos grandes. Por um momento quis voltar ao não-espaço, às cores, pessoas, melodias e coisas, formular a pergunta-chave, mas não precisei voltar. Sabia que, se voltasse, tudo seria profundamente diferente da experiência anterior e seria assim toda vez que retornasse. Não precisaria mais saber o que me aguardava, o que eu escondia ou o que realmente sou. Sou toda essa confusão, esse não-ser, esse infinito. Sou meus próprios desejos.


                                                  Agradeço à Mulher em frente ao espelho, de Pablo Picasso, mulher essa que mora atrás destes textos.