quinta-feira, 21 de julho de 2011

Portal

Tenho essa mania de me olhar no espelho o tempo todo. Não por excesso de vaidade ou narcisismo. Olho, olho de novo e mais uma vez sem procurar defeitos, qualidades ou mudanças quaisquer. Procuro mais que traços, marcas de expressão, cavo bem mais fundo que a superfície, muito mais abaixo da pele: procuro a mim mesma. Quando te perguntam "Quem é você?", o que você diz? Seu nome, sua profissão, a cor do seu cabelo? Se me perguntam quem sou eu, reluto em responder. Acho que sou bem mais que um nome escolhido pela minha mãe. Sou mais que os ângulos do meu rosto, meus óculos retangulares. A questão é que sou (ou era, até então) alguma coisa escondida de todos e de mim. Corro pro espelho, encaro os dois olhos grandes que me espreitam e espero que eles se movam sozinhos, sem mim, pisquem, digam alguma coisa. Um dia eles disseram. "Entre!"

E entrei. O espelho sólido já não era duro, era água, uma fina parede de água morna e cristalina. O espaço interior não era bem espaço, era um laranja rosáceo infinito, sem noção de profundidade, de teto ou chão. Depois virava um verde bandeira aveludado que se derramava em azul firmamento e se perdia em cores inimagináveis, assim como minha inconstância. Através desse não-espaço fluíam melodias, palavras, pessoas e objetos incontáveis, alguns até desconhecidos ou irreconhecíveis. Era uma mistura de passado, presente e futuro, todos ao mesmo tempo, já que tempo ali não havia, e tudo jorrando aos montes sobre mim e ao meu redor. Aquela confusão me bagunçava a mente e, quanto mais embaralhada ficava minha consciência, ainda mais confuso o não-espaço se configurava. Meu âmago implorou por ordem. Tudo fez silêncio e se apagou.

Agora, o não-espaço era muito mais nada, muito mais não, como se eu não estivesse ali. Talvez não estivesse mesmo fisicamente, só num entendimento líquido. Descobrindo a pergunta certa, obteria todas as respostas sobre minha vida, futuro, anseios e medos. Saberia quem eu sou com um único desejo. Desejo.

Quando dei por mim, estava em frente ao espelho, encarando novamente meus dois olhos grandes. Por um momento quis voltar ao não-espaço, às cores, pessoas, melodias e coisas, formular a pergunta-chave, mas não precisei voltar. Sabia que, se voltasse, tudo seria profundamente diferente da experiência anterior e seria assim toda vez que retornasse. Não precisaria mais saber o que me aguardava, o que eu escondia ou o que realmente sou. Sou toda essa confusão, esse não-ser, esse infinito. Sou meus próprios desejos.


                                                  Agradeço à Mulher em frente ao espelho, de Pablo Picasso, mulher essa que mora atrás destes textos.

2 comentários:

  1. Se existe uma coisa que eu gosto na literatura é uma coisa que vai muito além do domínio léxico, e é essa capacidade de prender o leitor. Isso não se ensina, na verdade não sei nem se tem alguma fórmula. Sei que encontrei isso no seu texto, numa profundidade de água morna que deu vontade de ficar o tempo todo, ainda que o texto tenha o tamanho exato para dar o gosto e deixar de existir antes que o sabor fique enjoativo. Primoroso, parabéns!

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  2. Me dá um puta orgulho ver você escrevendo coisas incríveis que nem esse texto.
    Sinto-me decifrada, e gosto disso.

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