domingo, 28 de outubro de 2012

Eu, o teto e o céu

Hoje a lua se exibe redonda, amarelada, completa em frente à minha janela, circundada por gordas nuvens cinzentas. A janela é estreita e não me permite nada além da observação, mas comprida o suficiente para que eu cole permanentemente nas ideias um longo recorte emoldurado de céu bem acima de mim. Fecho os olhos e nada mais existe: a cadeira, a mesa, o computador, os vasos cheios de curvas, os quadros coloridos, as paredes, o chão; há apenas negrume, cinza e amarelo... e então, insatisfeita do mundo como sou, teimo em olhar para o alto, um mergulho temerário na vastidão tão conhecida, e afundo a cabeça no teto. Toda vez.

Antiga é a fascinação pelo ideal, como seria com um árcade entre tantos outros. Escolhido o objeto, o próximo passo é atingir em cheio esse estado de suspensão, arrebatado por sentimentos quaisquer, não muito bem definidos ou sequer passíveis de definição. Uma situação que tange o desconforto, mas o que é o incômodo quando, da dor, só se extrai deleite?

Depois de muito observar, quase alcançando a exaustão, a lua some, recoberta pelas nuvens que antes pareciam estáticas ao seu redor. Me lembro que há uma porta aberta ao meu lado - e sempre estão lá, as portas abertas. Não que seja uma solução para ampliar o que antes era um pedaço retangular de universo porque aquela imagem já se dissolveu, as nuvens andaram e o mundo girou. E mesmo na rua, num campo, perdida no espaço, sempre existirá um teto entre mim e o céu.

domingo, 8 de julho de 2012

Confissão


Se lhe pareço fria, tenha certeza: eu sou. Como qualquer pessoa com qualquer ausência, a minha maior é dessa chama que unge a fala e os menores movimentos de tipos que muito me impressionam. Me falta esse tato nas relações, esse jeito de lidar com o mundo como quem acolhe o inesperado. Não sou hábil em me atrelar às nuances que a mim são expostas. Acomodo-me, então, à poída poltrona daquilo que é cômodo, distante dos demais. Me moldo aos gestos rápidos, superficiais, boio num lago raso e sombrio. 

Se lhe pareço fria, não se engane: preciso, mais do que todas as coisas, de calor. Qualquer ser arrefecido se esgueira por entre o soturno em busca do claro, do quente. Ao frio é possível se acostumar, mas, como ouvi em algum lugar, se acostumar não significa gostar de algo. Longe disso. E se sopro um vento frio de indiferença, saiba, não espero menos que um abraço cálido.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Periódico

I - A casa que um dia fora azul

Ficava no fim da rua sem saída a casinha que um dia fora azul. O muro baixo que cobria a frente, sem sucesso, recoberto por violeteiras secas; o portão de grade velha e retorcida; uma perdida cadeira de balanço de ferro; o quintalzinho de uns cinco passos de comprimento, com terra batida à esquerda e à direita e um caminho de pedras soltas, marmóreas e esverdeadas em direção à porta; uma tábua que pendia do telhado, presa por um arame, oscilando ao sabor do vento em frente à maior das janelas. O resto: entulho, capim e um grande vazio.

II - Quem vivia na casa que um dia fora azul?

A senhorinha que vivia na casa que um dia fora azul morava ali havia tempo, talvez a mais antiga residente do bairro. Bastante velha, coluna bastante curva, cabelos bastante brancos e olhos bastante vivos, de um âmbar carregado, que espreitavam diariamente o movimento da rua pelas grades do portão como quem espera uma visita atrasada em demasia. Não passeava pela rua, não recebia cartas, tampouco guardava a cadeira de balanço nos dias de chuva. Ninguém sabia seu nome e nem precisava: era apenas a senhorinha da casa que um dia fora azul.

III - Os hábitos da senhorinha

Não se via movimento na casa que um dia fora azul. Bem, pelo menos durante a manhã e primeiras horas da tarde. O processo de inquietação se iniciava normalmente às 15h. A senhorinha desfilava incontáveis vezes pelas janelas – muito grandes e sempre abertas, diferentemente da porta de entrada, oferecendo aos olhos de qualquer um quase tudo que se passava no interior da casa –, desenvolvendo o tempo todo alguma tarefa, normalmente na seguinte ordem:
  1. Batia insuficientemente os tapetes grossos e sujos, cujo pó parecia infinito;
  2. Acendia uma das bocas do fogão e colocava sobre ela um bule amassado;
  3. Regava abundantemente os vasinhos de flores espalhados pelos cômodos (ainda que todas elas já aparentassem morte antiga por excesso de água);
  4. Via a água das plantas e se lembrava de encher o bule - voltava à cozinha;
  5. Nivelava um quadro na parede da sala de estar que sempre voltava a pender para um lado e, toda vez que se inclinava, transformava o sorriso doce e efusivo da menina retratada na pintura num risco torto e perturbador;
  6. Ligava a vitrola, o mesmo disco todos os dias, uma seleção de Sinatra;
  7. Entrava no que deveria ser seu quarto - sem janelas, por favor - e voltava alguns minutos depois, cabelos presos, vestido que um dia fora branco, colar de pérolas, talvez sapatos de salto, considerando o toc-toc oco no chão;
  8. Se concentrando na cozinha, passava o café - e o cheiro se espalhava, intenso, pelo ar;
  9. Buscava uma lata de biscoitos numa prateleira baixa do armário e um par de xícaras;
  10. Dispunha o café recém-passado, os biscoitos e as xícaras sobre a mesinha redonda;
  11. Se sentava num banquinho de madeira;
  12. E, finalmente, esperava, observando um relógio parado ao lado do armário. Ah, a espera... lugar comum.
IV - 

A cena se repetia todos os dias sem grandes alterações. Três, quatro horas depois, talvez cansada de esperar dentro da casa, a senhorinha saía e caminhava lentamente em direção ao portão, olhos muito abertos. Segurava as grades e espiava demoradamente. Ao longe, o disco arranhado, preso na vitrola, soava como um alarme: a senhorinha apalpava os bolsos até retirar de um deles um pedaço amarelado de papel. Abria, lia e remoía antigas conclusões. A carta era dobrada e voltava ao bolso; a senhorinha esboçava um sorriso qualquer, confuso, e voltava por onde tinha vindo; a tábua que pendia do telhado e a cadeira de balanço dançavam juntas, na cadência do disco arranhado. E o amanhã seria igual na casa que um dia fora azul.

sábado, 9 de junho de 2012

Não exatamente

Às vezes parece que a subjetividade perdeu a graça, se tornou uma estratégia inútil de linguagem. Em algum momento que não consigo definir, perdi a habilidade de usá-la pra me externar. Como se eu recebesse um vidro com dada quantidade de abstrato e consumisse rapidamente: muito no começo, cada vez menos conforme a consciência do fim fosse se aproximando. Como se brotasse em mim uma voz seca e desesperada que implorasse por simplicidade, pequenez e concisão; talvez a mesma voz arbitrária que me julgava óbvia e desmascarada em outros tempos. Na ausência do subjetivo e da experiência no objetivo, acabo por perder qualquer ferramenta de expressão.

As ideias se expandem e reverberam - logo chega a explosão.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Re-decompor


Sente frio; procura se aquecer em tudo que é externo, alheio, que não lhe pertence, mesmo naquilo que acha que é seu por direito – mas nunca será. Essa busca incessante por preenchimento das lacunas mais profundas, das fendas mais estreitas da existência de um ser, essa busca por completude. Ah, caminho desgastante...

Subi dolorosamente as escadas até o sétimo andar. O vento gelado da rua paralisara minhas pernas e qualquer gota de prudência que tentasse se instalar em minha mente. Cada degrau acima costurava em linhas frágeis as fantasias dissolutas por anos de tentativa e erro que, agora, pareciam absolutamente palpáveis. Uma colcha de devaneios.

***
 
- Quantas colheres de açúcar você pôs nesse chá?
- Sei lá.
- Como assim “sei lá”?
- Não sei, não contei, só pus.
- Por isso ele sempre fica um nojo de doce ou amargo demais.
- Você reclama muito.
- Já disse, duas colheres. Duas.
- E essa mania de medir tudo, pequena?
- Neurose, TOC, sei lá, ache o que quiser.
- Vontade de controlar o que não pode.
- E lá vamos nós para uma análise existencial baseada em quantas colheres de açúcar eu ponho no meu chá.
- E o seu sarcasmo, você mede?
- Imagina... você não quantifica nada, mesmo?

Não recebi resposta. Nem naquele dia, mês ou nos anos seguintes à separação. Até que cheguei em casa e vi um envelope verde junto à porta.

“Se há algo que vale a pena ser medido, com certeza é afeto. Sendo possível quantificá-lo, acho que a unidade de medida ideal é a saudade, pequena. Outros instrumentos, como ciúme ou felicidade, são dramáticos em demasia, passionais e dependentes de presença física... a saudade é termômetro da ausência. E se o tempo do sentir falta é sempre maior que o do estar acompanhado, é ele que temos de precisar, não acha?”

Considerei por alguns minutos, corri para enfrentar os sete andares.

***

Uma compreensão taciturna me envolveu ao firmar os pés no último – 98º, a conta fora feita outras vezes – degrau. A vontade que me carregava, inquieta e ofegante, à confirmação de uma necessidade recíproca, era, na verdade, aspiração não por ser preenchida, mas por preencher. Já não era questão de receber, mas de dar, de ser a peça que faz o encaixe, o líquido que ocupa uma taça opaca e vazia. Eu queria fazer parte dele, não trazê-lo para que fosse parte de mim. Da mania de medir, finalmente examinei o objeto certo. O oco que nele eu desejava em tempo algum seria completado por um motivo bem simples: era imensurável. Jamais teria uma fonte de calor e, assim sendo, tampouco seria minha própria fonte. Senti frio.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Meu tempo é quando

Boas são as pessoas de gosto líquido. Dessas que balançam quando se olha, inundam quando se vê, impregnam quando se percebe. Preenchidas por alguma substância sonsa, faceira, tímida, azul, mansa, que vai enrolando seu corpo e sua mente, dando nós a bel-prazer. E você, de boa vontade, encolhe o corpo para que as cordas fiquem mais apertadas. E dilata a mente quando os nós estão finalmente prontos.


Boas são as pessoas de matéria leve... dessas que te deixam assim, leve também.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre e sob cores e luzes

"Ao incidirem sobre os vidros coloridos da porta da sala, os raios do sol tingiam o chão, teto, paredes e o que mais atravessasse seu caminho. Tudo naquele ambiente parecia magicamente preenchido por verde, bordô, amarelo e violeta. O correr das horas arrastava as luzes por todo canto; a cortina de miçangas faiscava no fundo da sala, balançando ao sabor de uma brisa suave que mergulhava pelas janelas ao redor e espalhava o cheiro das rosas brancas do jardim; os anjinhos de porcelana sobre a mesa produziam sombras que lhes davam impressão de movimento, como se todos dançassem felizes por entre castiçais. O sentimento que invadia os olhos dos que observavam aquele balé de luzes e cores era o de uma vivacidade universal. Não era só a sala - o mundo todo luzia."

Como contar a forma de um sentimento sem dizê-lo? Falar sobre o que provoca e como reverbera? Das velhas cartas que trocavam em tempos distantes, uma sempre a marcou. Todas eram lindas, verdadeiras, de uma leveza que jamais vira. Entretanto, uma delas era mais especial que as outras por ser a mais sutil, particular e, descobriu tempos depois, a última carta que saiu das mãos dele. Um estranho veria apenas meia dúzia de linhas, a descrição de um espaço, algum encanto, mas nada grandioso... e como lhe parecia prazeroso imaginar um terceiro subestimando tudo aquilo que, para ela, jorrava por cada letra!

Ela o amava de um jeito inconcebível, puro como as cartas e graças a elas. Os homens daqueles dias remotos não eram feitos de roupas bem cortadas ou um ramalhete de flores, tampouco de uma beleza padronizada. Sua composição era toda palavras. Mulheres têm, cada uma a seu modo, olhos e ouvidos sensíveis a tudo que é poesia e, assim sendo, cabe a cada homem encontrar a chave certa.  A vida sem o escritor de cartas dissolveu-se em vazio. Não sabia bem o que aconteceu na época e já não tinha acesso aos fatos. Sabia que sua caixa de correspondência nunca mais recebeu uma visita ilustre, apenas algumas aranhas.

Como contar a forma de um sentimento sem dizê-lo? Resolveu, muitos anos depois da última carta, escrever uma resposta que jamais seria enviada:

"O que se via ali hoje não era a mesma cena. Não havia cor ou luz; apenas uma porta de vidros quebrados, algumas tábuas pregadas que lhe cobriam até a metade; a pouca luminosidade que alcançava a sala quase não era suficiente para distinguir os móveis velhos ou as grossas camadas de pó e abandono sobre eles. As miçangas da cortina se espalhavam, tristes, pelo chão. Na mesa, cacos de porcelana que um dia foram anjos. Pobres anjinhos, o que foi feito de vocês? Por que não lhes é dada mais a chance de dançar sob cores verdadeiras? Muito tempo se passou e só Deus sabe como o tempo é cruel. Mesmo assim, qualquer um que entra nessa sala sente que ela guarda algo maior. Qualquer um pode afirmar que, ainda que quase ocultos sob os anos, resquícios de beleza se espalham pelo ar. Janelas abertas; o cheiro das rosas brancas continua vivo e doce."

domingo, 8 de janeiro de 2012

Motivos pra ficar

Andando numa rua de pavimentos redondos, os dois meninos brincavam de estalar folhas secas ao pisá-las.

- Meus pais querem se mudar.
- É? Por quê?
- Dizem que se cansaram dessa cidade, que aqui não tem nada bom.
- Como assim não tem nada bom? Tem a sorveteria--
- Calda de caramelo!
- Prefiro a de menta.
- Eca, parece pasta de dente!
- Eu gosto de pasta de dente.
- Sua mãe já te disse pra parar com isso.
- Tá, tá, mas tem a sorveteria, os bombons da Dona Marilza, a praça e os brinquedos da praça, os dinossauros do museu, o t-rex!
- A Laurinha ...
- Coitado, com aqueles bracinhos... o que tem ela?
- Nada não.
- Então por que você falou dela?
- Nada, já disse!
- A gente aqui falando de dinossauro e você botando menina no meio?!
- Não, é que... ah, me deixa.
- Pra onde vocês vão?
- Nem sei.
- Lá não vai ter o carteiro careca.
- Vou ter que arrumar outro carteiro pra roubar o boné.
- Mas não vai ter graça porque ele não vai ser careca e não vai correr feito doido atrás de você.
- E não existe mais nenhum carteiro careca no mundo inteiro?
- Existir até pode, mas um com verrugas na careca eu duvido muito.
- Droga.
- Será que tem praia? Ia ser legal ter praia, aí eu ia pra sua casa nas férias e a gente jogava bola na areia.
- E nadava.
- E comia milho.
- Mas milho tem aqui, né.
- Viu, tem muita coisa boa aqui.
- É que eles querem outras coisas boas que aqui não tem.
- Tipo o que?
- Meu pai vive reclamando que o trabalho dele é uma merda, ele não gosta quando eu falo merda.
- Merda por quê?
- Ele diz que é feio, que não é coisa de criança falar.
- Nããão, tô falando do trabalho.
- Ah, ele ganha mal.
- Só mudar de emprego.
- Ele diz que não tem "nada da altura dele" aqui.
- Manda ele mudar de altura.
- Ahm?
- O problema não é com a cidade, é com ele.
- Aff, você não entende nada dessas coisas de adulto.
- Nem quero mesmo. Me dá seu videogame?
- Que?
- Me dá seu videogame de recordação.
- Claro que não!
- Se fosse a Laurinha pedindo...