sábado, 20 de abril de 2013

Das cartas



Paris, 5 de março de 1907.

Lucas, meu caro amigo,

Não seria capaz de imaginar a surpresa que me assolou ao encontrar seu nome no remetente. Uma torrente de lembranças que pareciam há muito esquecidas num canto da memória veio à tona, fresca como o café que nos era servido nas várias tardes que dividimos em seu casarão. Ao contrário de você, continuo a vislumbrar bem seu rosto em minha mente, ainda que dificilmente corresponda às suas feições atuais.

Paris me deprime e, ao escrever isso, consigo ouvir um muxoxo qualquer de desaprovação saído de seus lábios. Toda a beleza da cidade se esgotou em dois ou três anos a partir de minha chegada. Meu amigo, você me conhece bem e em nada mudei nesse quesito: conteúdo sempre me foi mais sedutor que estética. Muito mais. Pode ser tolice minha, mas já investiguei cada canto dessa capital e tudo me parece absolutamente conhecido, repetitivo e desgastante. Quanto aos franceses: ah, os franceses! Divertidíssimos, encantadores, pude desfrutar da companhia de alguns, das joias de outros, da champanha destes, das noites daqueles, do je ne sais quoi de todos eles... entretanto, todos são parte indistinguível de Paris e, assim sendo, igualmente me cansaram.

Todo esse desvario sobre a vida europeia tem um único propósito: dizer-lhe que regressarei em breve às terras brasileiras. Suas palavras me encheram de uma saudade imensa e da saudade de sentir saudades.  Não posso ainda precisar uma data, tenho de resolver algumas questões nas quais me meti e que são um pouco difíceis de eliminar rapidamente. Enfim, conheço excelentes doutores que poderão cuidar de seu caso e, do mesmo modo, conheço as maneiras de tornar esses seus dias de ópio e cortinas fechadas um tanto mais aprazíveis.

Mande beijos a Hugo e diga-lhe que os velhos tempos hão de retornar!

À bientôt!


                                                                                                                   Júlia

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Vertente

Há esse pesar cinzento
De quem arrasta mil correntes
As pálpebras lentas, cadentes
E um tom de urgência que invento

Há essa doença rasa
De quem aparenta cansaço
Tremor que corre mãos, braços
E a mente que estaca e atrasa

Corpo que reproduz peito
Arde, dói, se encolhe, estreito
Já não há medicação

Moléstia do coração
Que te faz sangrar por dentro:
Sangra sentimento.