sexta-feira, 25 de novembro de 2011

(In)consciência

Levantou-se uma hora mais cedo que o de costume. Não levaria mais que trinta minutos para tomar banho, vestir os trapos de sempre, deixar o café pronto e sair para o trabalho, mas os últimos dias exigiram um tempo extra. Sentada em frente ao espelho, aplicava grossas camadas de corretivo amarelado ao redor dos olhos, no nariz e nas bochechas, descendo e se concentrando nos grandes roxos do pescoço. Não havia produto suficiente para os braços; apesar do dia quente de verão, sairia de casa com uma blusa de mangas compridas. O resto do corpo andava sempre coberto, não seria um problema. Enquanto sujava os dedos com mais um pouco de maquiagem, observava refletido ao fundo o marido espalhado na cama, seu ronco alto ecoando pelo quarto. Ao observá-lo se mover brevemente sobre os lençóis de cetim, um arrepio lhe atravessou a espinha. Não, não tinha acordado, continuava no mais pesado dos sonos, ainda mais depois de toda a cerveja e cachaça que bebera na noite anterior.

Valério passava o dia todo em casa depois de perder o emprego. Rosa ficou responsável pelo sustento do lar - se é que aquilo se chamaria lar -, assim como das antigas atribuições de dona de casa. Acordava muito cedo, preparava o café da manhã, ia pro trabalho, voltava tarde, fazia o jantar, arrumava a cozinha cheia de copos sujos, garrafas e restos de comida espalhados.

Os longos cabelos negros de Rosa eram sua paixão. Alisava agora fios estragados na altura dos ombros, opacos e rígidos. Valério mudou completamente logo que se casaram. No namoro era muito doce, delicado, afetuoso... mesmo que deveras ciumento. A família se incomodava um pouco com os exageros dele, mas ainda sim se orgulhava, melhor escolha não haveria. Moço trabalhador, sério, honrado. Faria Rosa muito feliz. A primeira medida pós-matrimônio foi jogar fora todas as roupas de solteira que ela guardava. As substitutas foram vestidos que iam até a metade da canela, gola rente ao pescoço. "Mulher minha não anda se exibindo por aí.". Os vários vidros de perfume, seu vício particular, foram esvaziados um a um. Ao se mudarem para uma casinha na periferia muito distante dos pais de Rosa ou de qualquer outra pessoa, um grande isolamento foi imposto. Ela agora passava o dia limpando o piso, cozinhando, lavando, passando. Valério surgiu um dia com uma tesoura. Um movimento rápido e o gigantesco rabo-de-cavalo dela estava espalhado no chão. Quando as lágrimas verteram, um tapa estridente lhe cortou o rosto, seguido de afagos grosseiros e incompreensíveis. "Fique quieta que quem manda sou eu. Eu só quero o seu melhor...". Dia após dia, a identidade de Rosa ia sendo apagada. As vontades do marido se sobrepunham às dela. Não se queixava, sabia que se tratava de uma prova de amor. 

Rosa não engravidava. Não era estéril, vinha de uma família de cinco irmãos, todos eles com infinitos filhos. Valério não entendia. As brigas se intensificavam. As noites se tornaram insuportáveis. Ele queria um filho e agora tentaria todo dia, sem se esquecer de castigar Rosa pela incompetência, é claro. Nem para engravidar servia. Ela aceitava, submissa, acatava a ordem e servia de objeto de prazer para o marido. A violência com a qual Valério a possuía era assustadora. Tapas, socos, arranhões, mordidas, gritos, ofensas e uma força que parecia ter como intento rasgar não só seu útero, sua barriga, mas sua alma. Ela não questionava, ele estava certo. Era uma mulher incompleta, inútil e merecia essa absolvição que a dor proporciona. O pôr-do-sol era aviso da expiação.

Enquanto passava a última camada de corretivo sobre as manchas da noite anterior, Rosa quis pensar sobre o que sua vida tinha se tornado. Um marido que a amava tão profundamente, mostrava o certo e o errado, o caminho para a satisfação, os instrumentos de perdão por todos os seus defeitos. Se levantou, suspirou e sorriu: ela era feliz.

sábado, 19 de novembro de 2011

Alimente o monstro

Uma xícara do café fumegante que me alivia os sentidos bem na minha frente e, ainda sim, não consigo tomá-lo ou fazer qualquer outra coisa senão observar os desenhos que seu vapor vai compondo no espaço. As mesmas formas espiraladas... a mesa sobre a qual tamborilo os dedos não poderia ser mais irônica: redonda, tampo de vidro absolutamente transparente, leve, pés que fazem curvas perfeitas em si mesmas... e meu eu assim, cheio de pontas, opaco, pesado, um amontoado confuso de sentimentos que não cabem nesse corpo limitado. Não que eu deseje o absurdo de ser coisa inanimada - ainda que a inexpressividade transborde por cada um dos meus poros. Só há algum despeito no que tange essa concisão do que é imóvel e não-pensante. Busco uma clareza e brevidade que sei ser inalcançável; me contento com a contemplação do que é simples, invejavelmente utópico.

Me lembro com exatidão de cada um dos amores que tive. E não foram poucos, veja bem, foram quase infinitos. E perfeitos. Tudo isso por uma razão muito fundamental: se mantiveram no plano das ideias, nas particularidades. Elevá-los ao tangível não passa de desperdício. O esforço necessário para torná-los palpáveis e públicos traz um cansaço que já não me permito sentir. O ideal proporciona uma gama de amores muito mais diversa. Ah, aí está algo que me conforta profundamente: poder amar sem restrições. Sem o medo da rejeição que jamais virá, das inconveniências de um relacionamento e, pior ainda, do fim sem planejamento. Amo meu professor de olhos cor de âmbar, o carteiro das quintas-feiras, o motorista do ônibus, o estranho que me esbarra na rua, o vendedor da loja de vinis, o colega com ares do interior, o garçom que checa se minha xícara está cheia do café de sempre e, especialmente, cada um dos meus amigos. Cada um deles. Flerto, namoro, caso, tenho filhos, traio, me separo, volto, envelheço junto e mais incontáveis experiências que vivencio ao lado de todos sem que eles ao menos pressintam. Tudo corre de acordo com os meus desejos e, desse modo, minha mente me torna auto-suficiente.

Como nem tudo pode ser completamente agradável, as infinitas vidas que tenho me fornecem peso imenso. Sou um livro de contos que não chega à página final. Sempre há um porém, além, reticências capazes de expandir cada uma das histórias já criadas, remodelá-las a bel-prazer, fazer acréscimos mínimos ou gerar grandes reviravoltas. Uma novela absurda, no fim das contas. Essa densidade me consome, enjoa, como se eu fosse um bloco de ideias compactadas que já não frutificam como deveriam. E o que me resta é invejar uma mesa, algo que é aquilo o que se vê, sem esconderijos, sem subterfúgios. Tomo meu café já frio num segundo. O tempo de distração acaba, preciso de mais reticências para minha história. O rapaz logo ali me parece interessante...

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Uma pena

Sob um céu muito cinzento e envolta num vento cortante, assistia a uma criança brincando na areia suja da prainha. Ela parecia totalmente absorta em seu trabalho: construir um enorme e imponente castelo - que a mim mais parecia um monte indefinível, mas quem sou eu para enxergar toda a beleza por trás da imaginação infantil? Com a dificuldade de suas mãozinhas pouco habilidosas, raspava a areia compactada e ia a acumulando a um lado; depois, largava a cavação para caçar pedrinhas - ou melhor, grandes rochedos que cercassem e protegessem devidamente sua grande obra - e logo voltava com os braços transbordando em cascalho que era amontoado noutro canto. Material acumulado, começava a construção em si. A serrinha de areia ia tomando alguma forma muito sensata para aquela mente despreocupada, algo meio achatado e arredondado. Às vezes ela esbarrava sem querer e tudo ia ao chão, não que isso a fizesse desistir. Voltava a erguer tudo e sempre que fosse necessário, paciência que invejei. Cavou mais um pouco e fez dois amontoados sobre o castelo em extremos opostos, deveriam ser torres. As pedrinhas foram espalhadas fartamente ao redor mas com delicadeza já que cada uma tinha um lugar pré-determinado, o que incluia uma ou outra troca ocasional. Fez do nada uma cara de preocupação, parecia ter se esquecido de algo. Correu ao longe e sumiu, eu não sabia se voltaria.

Eu ando esperando alguma coisa. Não que eu goste de esperar - queria a paciência da criança no castelo -, na verdade detesto e quase nunca espero por nada. Tenho o dom de me interromper abruptamente sempre que os fatos insistem em tentar se diluir no tão temido verbo aguardar. Me inquietam os que falam lentamente, os que me impõem suspense demais, as filas, os resultados. Ainda sim, eu ando esperando alguma coisa. Mesmo que nem tudo corra como desejo, ou melhor, quase nada, conto com um momento crucial nos acontecimentos, aquele 11h59min dos relógios de ponteiros que pode morrer às 12h ou simplesmente parar ali e emoldurar uma eternidade, os finais felizes: espero a chance da finalização, oportunidade essa que nunca me é dada. Meus relógios sempre giram rápido demais...

E então a criança voltou com as duas mãos preenchidas. A direita trazia três conchas e a esquerda, uma grande pena colorida. Ela pulou a cerca de pedrinhas cuidadosamente, abaixou-se e afundou as três conchas na frente do castelo: uma delas era a gigantesca porta e as outras duas eram janelinhas em cada torre. Agora só restava o grand finale, a pena que seria a bandeira do topo. Seus olhos faiscavam ao imaginar que todo aquele trabalho resultaria em composição tão bela. Lamentável foi o céu nublado ter escolhido se desfazer naquele instante, suas lágrimas desmanchando a construção, lavando tudo. A criança saiu correndo em busca de abrigo. A pena caiu de sua mão esquerda e foi esquecida na areia suja. O castelo jamais foi finalizado.

sábado, 22 de outubro de 2011

Mal-assombrado

Num instante que diluía profunda reflexão a um estado de vigília, me vi naquela sala enorme e mal iluminada. As paredes eram de um vermelho escarlate opaco, sujo, desbotado pelo que pareciam anos de abandono. Poderia, mesmo com a insuficiência de luz, afirmar que elas já tinham recebido algumas demãos de tinta sobre a cobertura original, dadas as marcas de pincel aqui e ali, as variações de intensidade... ainda sim, não me interessei por verificar. Sem quadros, sem janelas, sem coisa alguma. Eu estava sentada numa cadeira muito firme, mas pouco confortável, sem braços e com o encosto pouco acima da metade de minhas costas. À esquerda, uma grande porta com arabescos em alto-relevo que deduzi ser a de acesso à área externa, talvez uma varanda ou jardim; à frente, uma escada lateral morria no segundo andar; um portal em forma de arco e preenchido por escuridão ocupava a parede direita. Alguns móveis se espalhavam pelos cantos, mesinhas de centro em sua maioria, todas quebradas. Demorei a notar e me espantei ao ver, contrastando com o ar de deterioração daquele espaço, o piano no meio da sala. Novo, limpo, preto, as teclas reluziriam com um pouco mais de claridade. Quis tocar uma canção que desse vida ao ambiente, mas não sabia nada mais que o dó-ré-mi-fá. Levantei-me para explorar.

A pouca luz da sala me seguia por onde quer que eu fosse como uma lâmpada fraca e flutuante. À medida que me aproximava das paredes e móveis, percebia com maior nitidez sua ruina. Marcas profundas na madeira e cupins se intercalavam às grossas camadas de pó. Cascas de tinta sairiam na minha mão se eu puxasse. O piano, entretanto, era tão absolutamente impecável que qualquer um diria que tinha sido posto ali há não mais de uma hora e por engano. O piso de tacos rangia suavemente e era áspero aos passos. Continuei caminhando relutante, tentando decidir se ia até o próximo patamar ou mergulhava na escuridão - a ideia de ir embora jamais me ocorrera. Meu medo de escuro falou mais alto; subi as escadas.

Um grande corredor no topo dos degraus com várias portas em sua extensão se assemelhava a um hotel. As paredes ainda eram do mesmo escarlate envelhecido, mas alguns castiçais vazios se distribuíam ao longo delas. Um arrepio transpassou minha espinha: o piano no primeiro andar agora tocava sozinho - ou não, não desceria para saber se alguém o tocava - uma melodia lenta, nem assustadora nem agradável. O corredor não tinha fim. Não que fosse longo demais, realmente não terminava. Certifiquei-me disso ao caminhar através dele por algum tempo. As portas cor de mogno eram bem semelhantes entre si, lisas e comuns, com exceção de uma delas. Sombria, tinha arabescos como a porta de entrada, mas em baixo-relevo, um olho mágico contornado por ouro velho e nenhuma maçaneta ou fechadura. Essa diferença em relação às outras me atraiu como um ímã. Não precisei empurrar, ela se abriu sozinha.

O piano trocou sua trilha sonora: dele jorrava agora uma música profundamente triste e depressiva, ao mesmo tempo que acolhedora, agitando e aquecendo em mim algo que parecia morto há tempos. Estaquei. A luz que flutuava sobre minha cabeça moveu-se à frente, como se outro alvo quisesse fazer-se ver. Pude então distinguir um vulto a um canto que ia se transformando em "coisa" com o aproximar da luminosidade. Não demorou muito e identifiquei um alto e magro fantasma. Seu corpo ou o que quer que compusesse sua não-matéria era de um azulado semitransparente. Manter os olhos sobre ele era insuportável, não por ser feio ou digno de medo, mas por não ter um aspecto real, concebível. Mesmo assim, seu interior - talvez seu coração - brilhava em tons de laranja. Me sentia capaz de abraçá-lo, aquecê-lo, entranhar-me em seu peito e desaparecer. A questão é que a falsidade no resto daquela figura era absurda e me afastava. Permaneci nesse estado de atração e repulsão por um período incalculável e não me lembro de ter saído dali. Só sei que estava fora daquela casa sinistra, das instalações do meu coração.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Impulso


Entre todas as coisas passíveis de medo para Dona M, a mais insuportável era filhotes de gato. Filhotes em geral lhe causavam algum asco. Os de rato eram horrorosos, os de cão pareciam ratos crescidos; mas a simples ideia de imaginar um gatinho rosáceo, sem pêlos, com olhos ainda fechados e miado agudo parecia aterrorizar Dona M descomunalmente. Costumava contar um episódio de infância para justificar esse pavor: criada numa fazenda, vivia em meio a todo tipo de bicho - vaca, cavalo, porco, sucuri, bem-te-vi e, obviamente, gato, animal que se reproduz quase como coelho no interior - e estava habituada a todos eles. Eis que numa noite uma gata prenha resolveu pular a janela do quarto de Dona M e se acomodar em sua cama, ignorando o fato da dona do espaço estar bem ali, debaixo dos lençóis. Dona M acordou aos saltos com um despertador natural diferente dos berros comuns de sua mãe: um monte de filhotes de gato com seus miadinhos finos. Sua irmã, que chamarei aqui de Dona G, correu para ver a cena, quase rolou em gargalhadas e, não menos satisfeita, pegou um dos gatinhos e jogou nas costas de Dona M, que saiu em disparada pela casa, gritando, chorando e contraindo o corpo na tentativa ineficaz de fazer o bichano cair. Desde então, a memória do felino lhe trazia uma série de sensações monstruosas. Foi ao psicólogo, psiquiatra, centros espíritas, centros de macumba e só encontrou uma solução no centro da cidade: comprou longas agulhas, lã e começou a tricotar como terapia.

Sr. M, marido de Dona M, vendo a proliferação de roedores no bairro e a solidão do filho único do casal - pequeno demais para receber um codinome e péssimo para fazer amizades -, chegou em casa com um lindo filhote de gato siamês, tão lindo que até parecia real. Não, ele não comprou um gato de verdade e nem esperava que um bicho de pelúcia fosse capaz de matar ratos. Era só uma medida simbólica - e estúpida, eu sei - para que o filho se sentisse acolhido por um amigo e útil no extermínio de pragas sobre a Terra. E deu certo. A princípio. O menino brincou por toda manhã e tarde, liquidou centenas de ratões imaginários, dentuços, de garras compridas e mais afiadas que a melhor das facas, uns muito gordos e sujos, outros esguios e com expressão de falsa superioridade (que lhe lembrava certa professora de geografia). Era o rei do mundo, garantia a supremacia humana frente aos roedores imundos e espalhadores de peste.

Dona M trabalhava fora o dia todo. Chegou à noite e foi logo se deitar. Estava exausta, o serviço exigira muito dela. Chegou a pegar as agulhas e tricotar um pouco para relaxar, mas o cansaço era tamanho que largou a distração sobre o criado-mudo e caiu no sono. Logo depois de Dona M adormecer, seu filho correu para o quarto dos pais carregando algo debaixo do braço. Queria mostrar para a mãe o novo amiguinho. Pulou na cama, pôs o gato de pelúcia na barriga de Dona M (que já não dormia de bruços por medo de que outro bichano se instalasse em suas costas) e disse: "Olha, mãe, esse é meu gato! Ele quer te conhecer! Fala com ela, gatinho! MIIIAU!"

O primeiro impulso de Dona M foi esticar o braço esquerdo, pegar uma das agulhas de tricô e perfurar repetidas vezes o ser que emitiu aquele ruído devastador.

domingo, 21 de agosto de 2011

Secreto



Meu quarto é o mesmo há dezenove anos. Bem, alguns móveis mudaram, a janela de correr com metal e vidro foi trocada por uma de madeira e venezianas, as paredes brancas cederam lugar a um lilás enjoativo. Fora isso, a disposição das coisas foi quase sempre a mesma, principalmente pela cômoda de puxadores antigos na parede oposta à porta. Não ouso mudá-la de lugar.

Com nove ou dez anos, tempos de tinta branca, eu tinha sempre o mesmo sonho: me levantava da cama, ia em direção à cômoda e notava que seu lado direito havia sido levemente arrastado para frente. Resolvia olhar o espaço a mais criado entre o móvel e a parede e encontrava um buraco recoberto por pedaços de papelão, grande o suficiente para que eu passasse. E passava correndo. No lado oposto descobria uma imensidão plana com capim fino, baixo, verde e novo. Ousaria dizer, sem muita certeza, que a terra exalava cheiro de uma chuva que poderia ter caído há três ou quatro horas, mesmo que não houvesse rastro de água em qualquer canto. E então já não tenho certeza se era capim ou um monte de flores do campo, amarelas e vívidas. O sol brilhava intenso, o céu era de um azul que presenciei poucas vezes, tão vivo! Uma ou outra nuvem se espalhava como pedaços finos de algodão. Nesses desencontros e insanidades de sonho, de repente, me via e estava, como se duas de mim existissem por ali, sentada no capim-que-era-flor, as costas apoiadas no tronco grosso e escuro de uma árvore altíssima, tão alta que não se via a copa, mas a sombra larga e fresca produzida por ela. Fechava os olhos, me via fechando os olhos - era enlevada por uma paz extraordinária, que não cabia em mim, nem naquela planície ou em todo o universo. Acordava em estado de tranquila felicidade e estranhava a situação. Eu, criança muito ativa, arteira, que vivia correndo por todos os lados, cantando e gritando, não era capaz de conceber a possibilidade de uma alegria gerada por calma, silêncio ou descanso. Ainda sim, ficava satisfeita pelo sonho e dormia esperando acordar e encontrar o buraco atrás da cômoda de puxadores antigos.

Os sonhos de hoje são meras manifestações do cotidiano. Não há mais surpresa, experiências inusitadas ou qualquer coisa que me deixe naquela contemplação. E o que mais queria era visitar campo, flores, céu e árvore uma última vez.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Lapsos - parte I

- Hoje, quatro de dezembro, 8h22min. Primeira gravação do dia. Paciente nº 0026. Bom dia, como vai?
- Acho engraçado perguntar a um número como ele está. Me sinto leve.
- Muito bem... como tem passado as noites?
- Mal, como sempre.
- Mesmo com os remédios que lhe receitei?
- Não tomo os remédios.
- ... por que não?
- Você estudou durante anos a mente humana em toda sua complexidade. Acredita mesmo que um comprimido seria capaz de dominar pensamentos?
- É um tratamento como outro qualquer. Agora, veja bem, estamos aqui hoje porque você escolheu se consultar, você escolheu se tratar. Essa vontade de alcançar absoluta sanidade partiu de você, o que já prova que algo é capaz de dominar seus devaneios. Os remédios são aliad...
- Aliados... você diz como se fossem meus amigos, ou melhor, como se fossem militantes numa guerra!
- Sim, não deixa de ser uma guerra.
- Guerras pressupõem ausência de vencedores e perdedores, doutor. Eu e minha mente não nos combatemos. Ela é líder, ditadora suprema, dona de mim. Sou o populacho sem voz, seguidor submisso, servo. Estou aqui hoje por puro capricho dela.
- ... pois bem, podemos começar?
- ...
- Por onde quiser.
- Viro as pessoas. Me transformo nelas. Qualquer uma, qualquer situação. Agora sou eu, depois... já nem sei quem sou, o que sou. Me levanto cedo, boto uns chinelos e vou pra padaria. Nem pego outra roupa porque durmo de camiseta e calça, pijamas são... não sei, organizados demais. No caminho, esbarro numa mulher que anda apressada pela calçada. Os papéis que ela carrega dentro de uma pasta voam por todo lado. E então sou ela, recolhendo os papéis, formulando ofensas pro homem que me esbarrou, caminhando com urgência. Meu celular toca, atendo e ouço meu chefe gritando, implorando pelos relatórios que fiquei de entregar, dizendo que me põe na rua se eu não chegar em dois minutos. Ouço o barulho oco dos meus saltos quadrados batendo no chão, clac-clac-clac-clac-CLAC, um dos saltos quebra, torço o pé, sinto cheiro de pão... e então sou eu de novo, na padaria, a atendente perguntando quantas colheres de açúcar quero no meu café. "Nenhuma", sempre respondo...
- Como isso acontece? Quero dizer, como você vive essa experiência? Como um narrador-observador?
- ... você me escuta? Eu me trans-for-mo nas pessoas. Vejo, cheiro, sinto como elas. Você acredita em espíritos, doutor?
- Possessões?
- Talvez... não nesse sentido que se usa por aí. Coisas malígnas. No de invadir, entrar. Mergulho em qualquer um e passo a pensar por ele...
- Pensar por ele ou como ele?
- Não tenho certeza.
- Continue.
- A mulher da pasta, dos relatórios, do salto quebrado. Meu pé não para de doer.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Portal

Tenho essa mania de me olhar no espelho o tempo todo. Não por excesso de vaidade ou narcisismo. Olho, olho de novo e mais uma vez sem procurar defeitos, qualidades ou mudanças quaisquer. Procuro mais que traços, marcas de expressão, cavo bem mais fundo que a superfície, muito mais abaixo da pele: procuro a mim mesma. Quando te perguntam "Quem é você?", o que você diz? Seu nome, sua profissão, a cor do seu cabelo? Se me perguntam quem sou eu, reluto em responder. Acho que sou bem mais que um nome escolhido pela minha mãe. Sou mais que os ângulos do meu rosto, meus óculos retangulares. A questão é que sou (ou era, até então) alguma coisa escondida de todos e de mim. Corro pro espelho, encaro os dois olhos grandes que me espreitam e espero que eles se movam sozinhos, sem mim, pisquem, digam alguma coisa. Um dia eles disseram. "Entre!"

E entrei. O espelho sólido já não era duro, era água, uma fina parede de água morna e cristalina. O espaço interior não era bem espaço, era um laranja rosáceo infinito, sem noção de profundidade, de teto ou chão. Depois virava um verde bandeira aveludado que se derramava em azul firmamento e se perdia em cores inimagináveis, assim como minha inconstância. Através desse não-espaço fluíam melodias, palavras, pessoas e objetos incontáveis, alguns até desconhecidos ou irreconhecíveis. Era uma mistura de passado, presente e futuro, todos ao mesmo tempo, já que tempo ali não havia, e tudo jorrando aos montes sobre mim e ao meu redor. Aquela confusão me bagunçava a mente e, quanto mais embaralhada ficava minha consciência, ainda mais confuso o não-espaço se configurava. Meu âmago implorou por ordem. Tudo fez silêncio e se apagou.

Agora, o não-espaço era muito mais nada, muito mais não, como se eu não estivesse ali. Talvez não estivesse mesmo fisicamente, só num entendimento líquido. Descobrindo a pergunta certa, obteria todas as respostas sobre minha vida, futuro, anseios e medos. Saberia quem eu sou com um único desejo. Desejo.

Quando dei por mim, estava em frente ao espelho, encarando novamente meus dois olhos grandes. Por um momento quis voltar ao não-espaço, às cores, pessoas, melodias e coisas, formular a pergunta-chave, mas não precisei voltar. Sabia que, se voltasse, tudo seria profundamente diferente da experiência anterior e seria assim toda vez que retornasse. Não precisaria mais saber o que me aguardava, o que eu escondia ou o que realmente sou. Sou toda essa confusão, esse não-ser, esse infinito. Sou meus próprios desejos.


                                                  Agradeço à Mulher em frente ao espelho, de Pablo Picasso, mulher essa que mora atrás destes textos.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Placebo

Quanto mais rápido se vão os anos, maior se torna a necessidade de uma borracha que desfaça todas as cicatrizes espalhadas pelo meu rosto.

Me diziam que o tempo é o senhor de tudo. Sobre curar feridas, sinto-me mal em discordar. Mal porque discordar, nesse caso, é o mesmo que assumir toda essa questão que fica cutucando minha cabeça por dentro. O tempo não cura nada, mesmo. Talvez cure os outros, tenha mais piedade dos outros. Talvez eu seja uma anormal que não merece a cura do tempo. Sempre soube dessa ineficácia das horas, minutos e segundos no que se refere às minhas cicatrizes, porém, acreditava que o relógio era um poderoso anestésico. Tão logo recordava isso, já começava a fugir, buscando nos ponteiros o alívio da dor, minhas pesadas doses de morfina. Funcionava muito bem, preciso afirmar. Era uma paz incrível, sensação de vazio muito bem vinda quando se carrega certos pesos por muito tempo.

Então vinha o grande problema: encarar minhas cicatrizes. Tudo muito bem, muito leve, até buscar a fonte da tristeza, da deformação. Como eu tinha definido a situação? Ah, sim, que "reencontrar foi o mesmo que trazer tudo à tona, reviver os velhos medos, naufragar no caos".

Daí me lembro de todo aquele sermão que os mais velhos dão aos mais jovens sobre o uso de drogas, lícitas ou não: anestesiar não funciona, o efeito passa tão depressa como volta a dor, ainda pior. Saiba, minha droga é lícita e muito recomendada, mas não menos enganosa. Minha droga é o tempo.


As rachaduras na minha máscara não anunciam nem um milésimo do que se passa sob ela.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Através do frio

O relógio despertou no horário de sempre e sem acordar ninguém. O homem passou a madrugada em claro, extasiado com as ideias que fervilhavam em sua cabeça. Desde o dia em que foi avisado da chegada dela, a ansiedade parecia corroer sua mente como ácido. Era como se cada hora de espera fosse uma eternidade, um universo inteiro de pensamentos, imagens, histórias e pura idealização. Ainda sim, vivia cada instante dessa espera intensa e demoradamente. Não queria e nem poderia desperdiçar a gama de sensações que lhe invadia.

Nem a água mais quente do chuveiro pôde se igualar ao calor que corria seu corpo. O vapor aumentava, assim como os desejos do homem de tocar as curvas delicadas da adolescente que vira no jornal e transformara em musa. Ao espalhar espuma, sua mão simulava contato com a pele levemente azulada da moça, imaginava como seria dura, lisa e fria, como contrastaria com a ardência de suas mãos precisas de médico, além de outros membros tão ou mais precisos. Cortou-se várias vezes ao tentar se barbear, culpa de um nervosismo compreensível - Acho que ela não se importará com um ou outro arranhão. Nem sentirá, na verdade -; acabou desistindo. Um pente velho organizou gentilmente o emaranhado de cabelos jovens e escuros, jogados para trás e lambuzados de gel. Camisa, calça, cinto, sapatos, tudo escolhido com antecedência, formando uma combinação apresentável e digna daquele dia. No café da manhã, a maçã nova foi saboreada como quem se farta num banquete requintado. As mordidas, cada vez mais lentas e fortes, continham o suco que teimava em escorrer pelos cantos da boca e davam uma prévia do que era esperado para aquela manhã.

Dirigiu de modo exemplar pelas ruas que o separavam do trabalho. Nenhum sinal vermelho ignorado, nenhuma esquina dobrada sem seta, coisa muito rara para alguém que ficava constantemente atrasado e não media acelerador. Chegando ao destino, lugar do tão ansiado encontro, sua serenidade foi quebrada bruscamente por uma presença inesperada: sua assistente, que deveria estar de férias, fitou-o por cima dos óculos retangulares e abriu o sorriso efusivo de sempre.

- O que raios faz aqui, Suzana? - falando de modo sobressaltado, o homem não segurou o assombro.

- Eu? Ah, claro que sou eu, não há mais ninguém aqui, não é mesmo? Ao menos ninguém que possa responder, hahahaha... Ahm, minhas férias acabam hoje, doutor!

- Acabam hoje mas não acabaram ainda, Suzana! - quase berrava, a voz muito aguda.

- Haha, calma, doutor! Até parece que não gosta de mim! Pode fingir que não porque eu sei que o senhor não move uma palha sem mim! Esqueci uns documentos meus antes de tirar as férias, vim buscá-los e já estou saindo. Mas não pense que vai ficar longe de mim muito tempo, amanhã eu volto com força total!

- Ah, claro, sim, documentos. - o doutor tamborilava os dedos na mesa, olhando fixamente a assistente e demonstrando terrível incômodo.

- Me olhando assim por quê? Deve querer trabalhar sozinho, aproveitar as últimas horas sem mim. Aposto que, bem lá no fundo, o senhor está morrendo de saudades!

- Suzana, meu anjo - sabia que obedeceria qualquer pedido com esse tratamento -, não vejo a hora de voltar a receber sua ajuda aqui. Entretanto, quero que descanse bem nesse último dia. Vá logo pra casa, durma o dia todo... ou melhor, faça o que quiser, mas vá.

- Hahaha, que fofo, o doutor preocupado comigo! Pronto, peguei tudo, já vou, até amanhã!

Quase sem acreditar, o homem viu a assistente caminhando em seus passinhos apressados até a porta. Finalmente ficaria sozinho e saciaria todas as vontades alojadas em seu peito. Sua musa estava ali, a alguns metros, esperando. Quando resolveu virar-se e ir ao encontro cobiçado, escutou Suzana gritando:

- Ah, doutor, hoje o senhor nem vai ter muito trabalho. Sabe aquela moça do jornal, a novinha, que iam trazer pra cá? Então, a família dela não autorizou a autópsia. A menina deve estar sendo enterrada nesse momento.

O homem não acreditou. Correu para a geladeira e começou a abrir gavetas em desespero. Um monte de corpos nus, pálidos, gélidos, e nenhum era o da moça. Arrancou o jaleco e a identificação de legista com ódio. Sentou-se no chão, desolado.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Meus luares

Encontrei isso nos rascunhos, datado de 18/01. Duas coisas me deixam abismadas.
1ª: eu ter tido essa delicadeza;
2ª: eu não fazer ideia de pra quem isso foi escrito. Acho que foi só uma mentira conveniente de escritora, haha.

Olho o céu e vejo a lua
entrecortada por nuvens cinzentas.
Minto.
Não vejo a lua, vejo um luar disforme,
a auréola branca e crescente que amanhã já será cheia
e furtará do resto toda a atenção.
Nos seus olhos vejo o mesmo:
não os olhos, mas o brilho encoberto por segredo e mistério,
cores e partículas, uma nebulosa.
Pena não haver estudo astronômico que me permita
conhecer suas fases e prever
a noite em que crescerá para mim;
tampouco se deixará de furtar-me o resto da atenção,
me levará para dentro dessas nuvens
ou, ainda, se nos encontraremos
num eclipse.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

E como.

Acordou mal.

Pensou em mudar o cabelo, e mudou. Nada muito drástico, claro, não fazia parte dela qualquer tipo de modificação radical. Um corte aqui, uma cor ali... foi testar nas calçadas. A tão esperada aprovação - ou invisibilidade, um sonho antigo - se desfez em nada. Absolutamente nada. Todos que passavam por ela, pela segurança momentânea que cabelos novos trazem, pela satisfação do contexto em que ela se emergiu, todos continuavam com seus olhos superiores, todos a encaravam como quem analisa um estrangeiro mal acostumado aos hábitos da região. Nem rejeição pôde ser detectada, só mesquinharia mesmo.

Pensou em mudar as roupas, jogar todas as combinações antigas no lixo e se adequar a uma moda mais despojada, como diziam por aí. Ou, quem sabe, aderir a significações alternativas, fazer parte de um grupo que se reconhecesse pelos trajes, se sentindo assim acolhida, sendo o encaixe de algo. Ou, ainda, se sentir bonita e feminina, equação simplificada de todo desejo de mulher. Pesquisou por entre estilos, comprou uma ou outra peça, se imaginou como as lindas garotas que via nas fotos, nas campanhas publicitárias, as que eram assediadas por homens realmente interessantes. Entretanto, toda tentativa era frustrada. Nenhuma roupa ficava bem pro espelho, a listrada aumentava a barriga, a saia curta exibia pernas que não eram de se exibir, os decotes não se preenchiam, o batom vermelho parecia vulgar, os saltos lhe tiravam classe e acrescentavam desastre ao passo.

Pensou em amigos novos. Socializar, ser querida, mudança estética alguma compensaria o prazer de ser requisitada num grupo. Saiu, visitou novos lugares mas não teve uma palavra sequer pra trocar com quem quer que fosse. Era como se a necessidade enrolasse a língua, ensurdecesse, apagasse do cérebro todos os bons assuntos, tirasse do rosto a coragem de um apelo elementar, o olho no olho.

Pensou em cursos, viagens, aprendizado. Nem adiantava, era tudo fogo de palha, perdia a graça facilmente, era abandonado.

Pensou em se matar, maior medo e tabu da família. Não resolveria, falariam disso por um, dois meses, depois se esqueceriam e ela viraria uma memória isolada. Pior, pararia na boca da chatisse religiosa, daquela história de "Ela não tinha o direito de fazer isso, só Deus o tem, ela não pensou nos que gostavam tanto dela?", como se quem pensa em morte se preocupasse com algo além da própria dor. Ela nunca condenava os suicidas, mas lamentava o que eles se tornavam: instrumentos gerais de pena.

As idéias da noite enfim terminaram. Deitada de bruços sobre um travesseiro velho e amarelado, resolveu fechar os olhos e esquecer, fugir dos pensamentos, fugir do mundo, fugir das convenções, dormir. Fugir, fugir era a palavra mais fixa naquela mente. Tão mais fácil ignorar essas questões e fugir. "Amanhã acordarei bem."

Acordou mal.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Eu-incendiário

Queimar almas é muito fácil - você nem precisa ser um piromaníaco, psicopata ou sádico. Existem dois tipos de alma:

1- as delicadas, frágeis, que viram cinzas e pó com a faísca mais simples;
2- as resistentes, fortes, até estremecem ao contato com o calor, mas dificilmente se desfazem assim, rapidamente.

Recomendo a você, jovem incendiário, que treine um pouco com o primeiro tipo. Vagueie entre elas, marque, machuque, espalhe chamas indiscriminadamente. Além de trazer habilidade, pode ser extremamente prazeroso, eu garanto.

Depois de adquirir experiência, você pode partir para as almas do segundo tipo. Como agir? É mais tranquilo do que imagina, sabe, mas exige uma paciência considerável e, sobretudo, convicção e força de vontade. Por que? Terá que tocar fogo uma, duas, três, incontáveis vezes. A princípio, a alma parecerá intacta, inabalada, sempre se recuperará com destreza. Entretanto, por dentro, ela nunca será a mesma novamente. Sempre haverá um pedacinho queimado, uma pontinha cinzenta que ficará ali, conservada e irrestaurável. E é aí que entra sua persistência: com as repetições, mais e mais partes serão consumidas pelas chamas, mesmo que lentamente. Os resultados podem vir quase que tardios, mas chegarão.

Tenho me tornado expert nessa modalidade e reafirmo: os efeitos são reais! Quase não há mais alma em mim.