sábado, 19 de novembro de 2011

Alimente o monstro

Uma xícara do café fumegante que me alivia os sentidos bem na minha frente e, ainda sim, não consigo tomá-lo ou fazer qualquer outra coisa senão observar os desenhos que seu vapor vai compondo no espaço. As mesmas formas espiraladas... a mesa sobre a qual tamborilo os dedos não poderia ser mais irônica: redonda, tampo de vidro absolutamente transparente, leve, pés que fazem curvas perfeitas em si mesmas... e meu eu assim, cheio de pontas, opaco, pesado, um amontoado confuso de sentimentos que não cabem nesse corpo limitado. Não que eu deseje o absurdo de ser coisa inanimada - ainda que a inexpressividade transborde por cada um dos meus poros. Só há algum despeito no que tange essa concisão do que é imóvel e não-pensante. Busco uma clareza e brevidade que sei ser inalcançável; me contento com a contemplação do que é simples, invejavelmente utópico.

Me lembro com exatidão de cada um dos amores que tive. E não foram poucos, veja bem, foram quase infinitos. E perfeitos. Tudo isso por uma razão muito fundamental: se mantiveram no plano das ideias, nas particularidades. Elevá-los ao tangível não passa de desperdício. O esforço necessário para torná-los palpáveis e públicos traz um cansaço que já não me permito sentir. O ideal proporciona uma gama de amores muito mais diversa. Ah, aí está algo que me conforta profundamente: poder amar sem restrições. Sem o medo da rejeição que jamais virá, das inconveniências de um relacionamento e, pior ainda, do fim sem planejamento. Amo meu professor de olhos cor de âmbar, o carteiro das quintas-feiras, o motorista do ônibus, o estranho que me esbarra na rua, o vendedor da loja de vinis, o colega com ares do interior, o garçom que checa se minha xícara está cheia do café de sempre e, especialmente, cada um dos meus amigos. Cada um deles. Flerto, namoro, caso, tenho filhos, traio, me separo, volto, envelheço junto e mais incontáveis experiências que vivencio ao lado de todos sem que eles ao menos pressintam. Tudo corre de acordo com os meus desejos e, desse modo, minha mente me torna auto-suficiente.

Como nem tudo pode ser completamente agradável, as infinitas vidas que tenho me fornecem peso imenso. Sou um livro de contos que não chega à página final. Sempre há um porém, além, reticências capazes de expandir cada uma das histórias já criadas, remodelá-las a bel-prazer, fazer acréscimos mínimos ou gerar grandes reviravoltas. Uma novela absurda, no fim das contas. Essa densidade me consome, enjoa, como se eu fosse um bloco de ideias compactadas que já não frutificam como deveriam. E o que me resta é invejar uma mesa, algo que é aquilo o que se vê, sem esconderijos, sem subterfúgios. Tomo meu café já frio num segundo. O tempo de distração acaba, preciso de mais reticências para minha história. O rapaz logo ali me parece interessante...

Um comentário:

  1. "Elevá-los ao tangível não passa de desperdício. O esforço necessário para torná-los palpáveis e públicos traz um cansaço que já não me permito sentir."

    Magnífico! Sua escrita parece estar cada vez mais recheada de um existencialismo muito próprio e muito agradável. Você me surpreende cada vez mais! Parabéns!

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