sexta-feira, 25 de novembro de 2011

(In)consciência

Levantou-se uma hora mais cedo que o de costume. Não levaria mais que trinta minutos para tomar banho, vestir os trapos de sempre, deixar o café pronto e sair para o trabalho, mas os últimos dias exigiram um tempo extra. Sentada em frente ao espelho, aplicava grossas camadas de corretivo amarelado ao redor dos olhos, no nariz e nas bochechas, descendo e se concentrando nos grandes roxos do pescoço. Não havia produto suficiente para os braços; apesar do dia quente de verão, sairia de casa com uma blusa de mangas compridas. O resto do corpo andava sempre coberto, não seria um problema. Enquanto sujava os dedos com mais um pouco de maquiagem, observava refletido ao fundo o marido espalhado na cama, seu ronco alto ecoando pelo quarto. Ao observá-lo se mover brevemente sobre os lençóis de cetim, um arrepio lhe atravessou a espinha. Não, não tinha acordado, continuava no mais pesado dos sonos, ainda mais depois de toda a cerveja e cachaça que bebera na noite anterior.

Valério passava o dia todo em casa depois de perder o emprego. Rosa ficou responsável pelo sustento do lar - se é que aquilo se chamaria lar -, assim como das antigas atribuições de dona de casa. Acordava muito cedo, preparava o café da manhã, ia pro trabalho, voltava tarde, fazia o jantar, arrumava a cozinha cheia de copos sujos, garrafas e restos de comida espalhados.

Os longos cabelos negros de Rosa eram sua paixão. Alisava agora fios estragados na altura dos ombros, opacos e rígidos. Valério mudou completamente logo que se casaram. No namoro era muito doce, delicado, afetuoso... mesmo que deveras ciumento. A família se incomodava um pouco com os exageros dele, mas ainda sim se orgulhava, melhor escolha não haveria. Moço trabalhador, sério, honrado. Faria Rosa muito feliz. A primeira medida pós-matrimônio foi jogar fora todas as roupas de solteira que ela guardava. As substitutas foram vestidos que iam até a metade da canela, gola rente ao pescoço. "Mulher minha não anda se exibindo por aí.". Os vários vidros de perfume, seu vício particular, foram esvaziados um a um. Ao se mudarem para uma casinha na periferia muito distante dos pais de Rosa ou de qualquer outra pessoa, um grande isolamento foi imposto. Ela agora passava o dia limpando o piso, cozinhando, lavando, passando. Valério surgiu um dia com uma tesoura. Um movimento rápido e o gigantesco rabo-de-cavalo dela estava espalhado no chão. Quando as lágrimas verteram, um tapa estridente lhe cortou o rosto, seguido de afagos grosseiros e incompreensíveis. "Fique quieta que quem manda sou eu. Eu só quero o seu melhor...". Dia após dia, a identidade de Rosa ia sendo apagada. As vontades do marido se sobrepunham às dela. Não se queixava, sabia que se tratava de uma prova de amor. 

Rosa não engravidava. Não era estéril, vinha de uma família de cinco irmãos, todos eles com infinitos filhos. Valério não entendia. As brigas se intensificavam. As noites se tornaram insuportáveis. Ele queria um filho e agora tentaria todo dia, sem se esquecer de castigar Rosa pela incompetência, é claro. Nem para engravidar servia. Ela aceitava, submissa, acatava a ordem e servia de objeto de prazer para o marido. A violência com a qual Valério a possuía era assustadora. Tapas, socos, arranhões, mordidas, gritos, ofensas e uma força que parecia ter como intento rasgar não só seu útero, sua barriga, mas sua alma. Ela não questionava, ele estava certo. Era uma mulher incompleta, inútil e merecia essa absolvição que a dor proporciona. O pôr-do-sol era aviso da expiação.

Enquanto passava a última camada de corretivo sobre as manchas da noite anterior, Rosa quis pensar sobre o que sua vida tinha se tornado. Um marido que a amava tão profundamente, mostrava o certo e o errado, o caminho para a satisfação, os instrumentos de perdão por todos os seus defeitos. Se levantou, suspirou e sorriu: ela era feliz.

2 comentários:

  1. Um tema tão interessante de ser escrito. Refletir como a amor cega uma pessoa, a ponto de se tornar tão castigada e não perceber isso. Essa falsa submissão. A mulher que sustenta a casa e tem que conviver como a que é sustentada e ainda assim consegue esboçar um sentimento de felicidade.
    A perda de si mesmo pelo outro..
    Gostei muito Júlia! Sua escrita é muito boa!! *-* Estarei sempre voltando por aqui =DD
    Bjo!

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