quinta-feira, 5 de maio de 2011

Através do frio

O relógio despertou no horário de sempre e sem acordar ninguém. O homem passou a madrugada em claro, extasiado com as ideias que fervilhavam em sua cabeça. Desde o dia em que foi avisado da chegada dela, a ansiedade parecia corroer sua mente como ácido. Era como se cada hora de espera fosse uma eternidade, um universo inteiro de pensamentos, imagens, histórias e pura idealização. Ainda sim, vivia cada instante dessa espera intensa e demoradamente. Não queria e nem poderia desperdiçar a gama de sensações que lhe invadia.

Nem a água mais quente do chuveiro pôde se igualar ao calor que corria seu corpo. O vapor aumentava, assim como os desejos do homem de tocar as curvas delicadas da adolescente que vira no jornal e transformara em musa. Ao espalhar espuma, sua mão simulava contato com a pele levemente azulada da moça, imaginava como seria dura, lisa e fria, como contrastaria com a ardência de suas mãos precisas de médico, além de outros membros tão ou mais precisos. Cortou-se várias vezes ao tentar se barbear, culpa de um nervosismo compreensível - Acho que ela não se importará com um ou outro arranhão. Nem sentirá, na verdade -; acabou desistindo. Um pente velho organizou gentilmente o emaranhado de cabelos jovens e escuros, jogados para trás e lambuzados de gel. Camisa, calça, cinto, sapatos, tudo escolhido com antecedência, formando uma combinação apresentável e digna daquele dia. No café da manhã, a maçã nova foi saboreada como quem se farta num banquete requintado. As mordidas, cada vez mais lentas e fortes, continham o suco que teimava em escorrer pelos cantos da boca e davam uma prévia do que era esperado para aquela manhã.

Dirigiu de modo exemplar pelas ruas que o separavam do trabalho. Nenhum sinal vermelho ignorado, nenhuma esquina dobrada sem seta, coisa muito rara para alguém que ficava constantemente atrasado e não media acelerador. Chegando ao destino, lugar do tão ansiado encontro, sua serenidade foi quebrada bruscamente por uma presença inesperada: sua assistente, que deveria estar de férias, fitou-o por cima dos óculos retangulares e abriu o sorriso efusivo de sempre.

- O que raios faz aqui, Suzana? - falando de modo sobressaltado, o homem não segurou o assombro.

- Eu? Ah, claro que sou eu, não há mais ninguém aqui, não é mesmo? Ao menos ninguém que possa responder, hahahaha... Ahm, minhas férias acabam hoje, doutor!

- Acabam hoje mas não acabaram ainda, Suzana! - quase berrava, a voz muito aguda.

- Haha, calma, doutor! Até parece que não gosta de mim! Pode fingir que não porque eu sei que o senhor não move uma palha sem mim! Esqueci uns documentos meus antes de tirar as férias, vim buscá-los e já estou saindo. Mas não pense que vai ficar longe de mim muito tempo, amanhã eu volto com força total!

- Ah, claro, sim, documentos. - o doutor tamborilava os dedos na mesa, olhando fixamente a assistente e demonstrando terrível incômodo.

- Me olhando assim por quê? Deve querer trabalhar sozinho, aproveitar as últimas horas sem mim. Aposto que, bem lá no fundo, o senhor está morrendo de saudades!

- Suzana, meu anjo - sabia que obedeceria qualquer pedido com esse tratamento -, não vejo a hora de voltar a receber sua ajuda aqui. Entretanto, quero que descanse bem nesse último dia. Vá logo pra casa, durma o dia todo... ou melhor, faça o que quiser, mas vá.

- Hahaha, que fofo, o doutor preocupado comigo! Pronto, peguei tudo, já vou, até amanhã!

Quase sem acreditar, o homem viu a assistente caminhando em seus passinhos apressados até a porta. Finalmente ficaria sozinho e saciaria todas as vontades alojadas em seu peito. Sua musa estava ali, a alguns metros, esperando. Quando resolveu virar-se e ir ao encontro cobiçado, escutou Suzana gritando:

- Ah, doutor, hoje o senhor nem vai ter muito trabalho. Sabe aquela moça do jornal, a novinha, que iam trazer pra cá? Então, a família dela não autorizou a autópsia. A menina deve estar sendo enterrada nesse momento.

O homem não acreditou. Correu para a geladeira e começou a abrir gavetas em desespero. Um monte de corpos nus, pálidos, gélidos, e nenhum era o da moça. Arrancou o jaleco e a identificação de legista com ódio. Sentou-se no chão, desolado.