domingo, 29 de dezembro de 2013

cadeau

"Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar."
Poema de Aniversário, Vinicius de Moraes

E se nada puder ofertar-te, que todas as belezas do universo cheguem a ti do mesmo modo.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Memento

Esquecer.
Esquecer é fácil,
sou toda esquecimento.
O que tenho esquecido:
as chaves,
o cartão,
a comida no fogo,
a paz,
as contas,
o médico,
a prova,
a alegria,
quem eu sou
e de esquecer de te querer - o maior esquecimento de todos.

domingo, 4 de agosto de 2013

Cemitério de sonhos

Poderia ter despejado logo o conteúdo da garrafa que trazia na mão esquerda, mas preferiu esperar. Sob os pés descalços, uma areia muito fina, carmim, que se alongava por todos os lados até o horizonte e fazia tudo parecer um oceano de sangue. Sobre a cabeça, o céu de todas as cores imagináveis, cada cor vinda de um dos que ali pisaram antes. Ao redor, um ar quente, quase sufocante. Ela sabia que deveria ir embora rápido, sentia a morte naquele lugar como se pudesse tocá-la. Bem, é o que se espera de um cemitério, ainda que aquele não fosse um cemitério comum. Nada de corpos putrefatos ou esqueletos enterrados em covas cobertas por terra, concreto e mármore: lá ela afundava os pés na areia fina e carmim do cemitério de sonhos.

Não houve tempo para despedidas, um último olhar na cama de um hospital ou qualquer fiapo de esperança: o atropelamento matou o marido de Moira instantaneamente. Seu último laço se perdeu e agora estava completamente sozinha no mundo. Os minutos pareciam horas e os dias, uma eternidade. Aos poucos, Moira perdia o gosto pelas coisas. O prazer da leitura, de uma boa música, das viagens frequentes, do cinema, das noites de dança. Era como se tudo só fizesse sentido a dois ou, caso não fosse feito a dois, se houvesse um momento posterior no qual cada um compartilhasse com o outro as experiências obtidas individualmente. As noites eram ainda mais longas que os dias e toda vez que caía no sono atribulado de sempre, mergulhava em algum sonho perturbador.

Havia gente por todo cemitério e de todo tipo. Uma adolescente grávida, aos prantos, despejava no oceano de areia o líquido leve e violáceo que trazia em sua garrafa. O carmim bebia tudo, furioso. Logo que a última gota foi derrubada, uma mancha violeta surgiu no céu, vívida e brilhante. Um homem jovem, paraplégico, também derramava o líquido de sua garrafa, azul cobalto e espesso, mas engolido facilmente pela areia. Sem demora uma mancha azul muito intensa brotou no céu. Garrafas esvaziadas, seus donos pareciam se esquecer do mormaço do lugar: caminhavam encolhidos, como se enferrujados, tremendo de frio. E a cada instante um novo borrão se imprimia no firmamento como uma certidão de todos os sonhos um dia abandonados.

Moira observava cada sujeito que se desfazia de seus desejos e achava tudo uma grande loucura. Eles não tinham uma real motivação para permitir que seus sonhos escorressem assim, de forma tão simples. Sentia que seria capaz de mergulhar no oceano carmim e recuperar cada gota, dar de volta a cada um a vida que ansiavam, por maiores que fossem as adversidades. Olhando sua própria garrafa, cheia de um líquido verde elétrico, continuou esperando.

Acordou cedo naquele dia e desesperada por um copo de água e um pouco de ar, tamanho foi o calor que sentiu. A cidade amanheceu muito quente e aquilo estalou na cabeça de Moira como a lembrança fresca de uma coisa qualquer. Abriu as janelas e olhou para cima: tantas nuvens e o céu completamente alvo, como um bloco de folhas novas, como uma certidão em branco. Resolveu ir ao cinema e comprar uns discos novos.

domingo, 7 de julho de 2013

Notas avulsas

- E hoje, o que vamos ouvir?

"Uma música que toque as notícias do mundo, os sons metálicos dos talheres dos bons restaurantes, os saltos de madeira das mulheres, o grito feliz das crianças, a buzina e o frear dos carros, as conversas depositadas ao pé do ouvido. Uma música que cante meu desejo de conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, ficar no lugar, no mesmo lugar escolhido livremente por mim. Uma música que dedilhe meu anseio em rasgar essa mordaça, quebrar essas correntes, subir os degraus empoeirados desse porão e correr e fugir e gritar e gritar e gritar. Uma música que afaste seu corpo imundo do meu, que me blinde. Uma música que tenha o mesmo ritmo das minhas mãos em punho se afundando no seu rosto, das minhas mãos se apertando e sacudindo seu pescoço. Uma música que te torture lenta e dolorosamente, do mesmo modo como o tempo passou durantes esses anos nos quais você tem me mantido presa. Uma música que te mate.", pensou em responder. Contudo, fez o de sempre: se deitar, fechar os olhos e esperar que tudo acabasse rápido. Mas nunca acabava.

- Muito bem, eu escolho. Consegui umas músicas novas, teremos trilha pra horas e horas e horas...

sábado, 20 de abril de 2013

Das cartas



Paris, 5 de março de 1907.

Lucas, meu caro amigo,

Não seria capaz de imaginar a surpresa que me assolou ao encontrar seu nome no remetente. Uma torrente de lembranças que pareciam há muito esquecidas num canto da memória veio à tona, fresca como o café que nos era servido nas várias tardes que dividimos em seu casarão. Ao contrário de você, continuo a vislumbrar bem seu rosto em minha mente, ainda que dificilmente corresponda às suas feições atuais.

Paris me deprime e, ao escrever isso, consigo ouvir um muxoxo qualquer de desaprovação saído de seus lábios. Toda a beleza da cidade se esgotou em dois ou três anos a partir de minha chegada. Meu amigo, você me conhece bem e em nada mudei nesse quesito: conteúdo sempre me foi mais sedutor que estética. Muito mais. Pode ser tolice minha, mas já investiguei cada canto dessa capital e tudo me parece absolutamente conhecido, repetitivo e desgastante. Quanto aos franceses: ah, os franceses! Divertidíssimos, encantadores, pude desfrutar da companhia de alguns, das joias de outros, da champanha destes, das noites daqueles, do je ne sais quoi de todos eles... entretanto, todos são parte indistinguível de Paris e, assim sendo, igualmente me cansaram.

Todo esse desvario sobre a vida europeia tem um único propósito: dizer-lhe que regressarei em breve às terras brasileiras. Suas palavras me encheram de uma saudade imensa e da saudade de sentir saudades.  Não posso ainda precisar uma data, tenho de resolver algumas questões nas quais me meti e que são um pouco difíceis de eliminar rapidamente. Enfim, conheço excelentes doutores que poderão cuidar de seu caso e, do mesmo modo, conheço as maneiras de tornar esses seus dias de ópio e cortinas fechadas um tanto mais aprazíveis.

Mande beijos a Hugo e diga-lhe que os velhos tempos hão de retornar!

À bientôt!


                                                                                                                   Júlia

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Vertente

Há esse pesar cinzento
De quem arrasta mil correntes
As pálpebras lentas, cadentes
E um tom de urgência que invento

Há essa doença rasa
De quem aparenta cansaço
Tremor que corre mãos, braços
E a mente que estaca e atrasa

Corpo que reproduz peito
Arde, dói, se encolhe, estreito
Já não há medicação

Moléstia do coração
Que te faz sangrar por dentro:
Sangra sentimento.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Miríade

Você já desejou muito alguma coisa? Muito mesmo, a ponto de sentir como se seus ossos não mais pertencessem a você, como se se tornassem lanças prontas para atravessar sua carne e ir de encontro ao céu? Como se sua pele, sempre fria, agora ficasse rosácea e febril, te deixando tonto, ardendo mais e mais até que só restasse no lugar do corpo uma imensa pira? Como se o ar se rarefizesse ao extremo e o ato de inspirar significasse um clamor, uma oração? Como se os olhos estivessem sempre baços, a boca estivesse seca e as mãos não existissem mais? Como se nada ao redor fizesse sentido? As músicas, as conversas, as cores, os móveis, a cerâmica gelada, as paredes, suas esquinas e a constante impressão de que tudo isso converge para o mesmo fim: o seu fim...

Você já desejou tanto alguma coisa a ponto de não conseguir fazer absolutamente nada sobre isso?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Desvario

Se desfaço o tempo em mim
não há mais tempo pra lembrar
me perco noutra cena 
que jamais vai existir
e, assim que o sol morrer,
a mente vai se esconder
e o vazio, se expandir.

Como posso me abster
dos desejos de um coração
se o que já não posso ter
é dissolvido em aspiração?
Me afogo no soturno.

Não preciso mais de luz,
coisa viva ou real
aqui, sob o céu noturno.

E, enfim, me decompus.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Namorados no sofá

— Que música é essa? 
— Hm... acho que é aquela cantora meio louca, uma canadense...
— Eu sei que é Alanis, sei que música é.
— Por que pergunta se sabe?
— É que... não, nada.
— Tá, agora vem aqui - ele disse, e lançou o sorriso de alguém que sabe muito sobre o mundo enquanto voltava a beijá-la.
— Não, espera.
— ... o que foi...
— A gente não pode namorar ouvindo Alanis.
— Por quê?
— Tá ouvindo isso? Tá tocando You Oughta Know!
— E?
— E aí que você vai me trocar por uma mulher mais nova e ficar de obscenidades com ela num teatro.
— Essa é a coisa mais absurda que eu já ouvi.
— Muda isso, por favor, vai.
— Ok... — se levantou, deu avançar no reprodutor de músicas e voltou ao afazer que lhe interessava no sofá.
— November Rain? Sério?
 E agora, qual é o problema? Estarmos em setembro? Quer que eu bote Wake Me Up When September Ends?
— Por que? Tá tão ruim pra você que prefere dormir por todo setembro?
— Escuta isso, olha esse solo, essa letra... "Eu poderia descansar minha cabeça sabendo que você foi minha."
— É, e depois um "porque nada dura pra sempre, nem mesmo a chuva fria de novembro". 
— É só uma música, mulher.
— Não quero, tira isso.
— Diz o que você quer, tenho Legião...
— Sim, e aí a gente corta os pulsos juntos depois.
— Smiths.
— Não quero morrer num ônibus de dois andares! Tira essa ideia de morte da sua cabeça, que coisa!
— Cazuza.
— Que bom que você não vai me largar por uma mulher mas por um homem...
— Bob Dylan.
— Muito velho.
— The Doors.
— O Jim Morrison parecia um psicopata, não.
— Beatles.
— Vai me trocar por uma piranha chinesa?
— Ela é japonesa.
— Tá sabendo demais, heim, conheceu alguma por aí? Gostou? Vai, vai lá ficar com essa umazinha de qualquer buraco da Ásia.
— Já sei a música perfeita pra você — se levantou pela última vez, fez a seleção e foi embora da sala enquanto Depeche Mode começava as primeiras notas de Enjoy The Silence.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Causalidades

Um prédio de tijolinhos, três andares, uma graça, dava algum ar de doce simplicidade à cidade cheia de edifícios de andares mil e suas vidraças espelhadas. Havia dois apartamentos por andar.


1º andar:
101 — Um velho senhor, uns oitenta anos, passava o dia lendo o jornal e tentando sintonizar qualquer frequência no seu pequeno rádio de pilha. Quando não fazia nenhuma das duas coisas, dormia na poltrona de couro da sala ou reclamava do barulho dos vizinhos.
102 — vazio.


2º andar:
201 — Uma família: pai, mãe e três filhos: um bebê de colo, uma menina de uns três anos e um rapaz de dezesseis. A mãe saía pra trabalhar bem cedo. O filho mais velho saía uma hora depois da mãe, provavelmente indo para a escola; voltava na hora do almoço, deixava a mochila, trocava de roupa e saía novamente. O pai cuidava da casa e das duas crianças durante todo o dia, exceto em determinado horário, quando pegava o celular e fazia insistentes ligações. Parecia exausto e tossia o tempo todo.
202 — Duas irmãs gêmeas, em torno dos cinquenta anos, sempre vestidas iguais, de preto. A sala do apartamento delas se resumia a uma cristaleira vazia, um sofá puído, uma televisão, um altar e duas cadeiras de balanço que, com alguma frequência, colocavam no corredor do andar. Quando resolviam ir para o lado de fora, ficavam remendando um pano qualquer e conversando sobre a vida dos moradores.


3º andar:
301 — Um homem jovem, vinte e cinco anos, bonito, atlético. Parecia ter dinheiro, o apartamento era muito bem mobiliado. Gostava de tomar uísque e ouvir Ella Fitzgerald em uma vitrola muito antiga enquanto não recebia outros homens em seu quarto.
302 — Uma mulher de uns trinta anos, média estatura, muito magra e com longos cabelos dolorosamente lisos, desgrenhados e vermelhos. Sempre usava algum vestido longo, sem mangas e de tecido leve. Dificilmente dormia. Passava dia e noite martelando o teclado do computador, fumando e procurando livros numa estante bastante comprida na parede da porta de entrada. Deveria ser escritora ou algo do gênero. Todo dia o seu telefone tocava, ela atendia aos berros, despejava meia dúzia de ofensas bem específicas a quem quer que estivesse do outro lado da linha, unidas a um grito claro: "Não me ligue mais!".

***

A mãe do 201 chegou mais cedo ao prédio. Escutou de longe o senhor do 101 roncando alto. Foi subindo a escadaria e começou a ouvir o choro dos dois filhos menores. Acelerou o passo, entrou correndo em casa e encontrou o bebê no berço, com fome, e a menina sentada no chão logo ao lado, irritada e gritando pelo escândalo do irmãozinho. Ao passar em frente à porta que esquecera aberta, enquanto procurava o pai — sem sucesso , escutou a voz rouca e desagradável das gêmeas, quase em coro:

— Seu marido? Subiu as escadas agora a pouco, parecia aflito, agoniado...

Dirigiu-se ao próximo andar e estacou no último degrau ao reconhecer a voz do marido numa discussão.

***

— Já disse pra não me procurar! 
— Disse pra não te ligar mais.
— Se não quero que me ligue, quero muito menos que venha me perturbar na minha própria casa!
— Por favor, Helena...
— Vai embora.
— Eu te amo! Te amo, amo tanto, não consigo mais ficar longe de você.
— O que eu preciso fazer pra que você me deixe em paz? Não consigo escrever, meu cigarro tá apagando e a culpa é sua.
— Volta pra mim, Helena.
— Pelo amor de Deus, você é casado, não precisa de mim pra nada.
— Preciso de você até pra respirar! Não aguento mais aquela casa, aquela mulher insossa, não reconheço meus filhos. Eu tô doente, Helena, e você é minha luz.
— Para de dizer bobag-- que barulho foi esse?
— É como se algo tivesse rolado escada abaixo.

***

Tomou um grande gole de uísque e voltou a se concentrar na boca daquele que tanto ansiava. Seus lábios, agora ainda mais quentes, se desesperavam em explorar cada pedaço de pele como se tentassem absorver sangue e alma. Estava tão absorto no jazz macio que era derramado da vitrola, assim como no desejo que enlevava seu corpo, que não ouviu a briga no apartamento da frente, tampouco o baque na escada. Só voltou ao mundo real quando seu pai abriu a porta assustado, buscando ajuda, e o flagrou com o vizinho do 301.

***

— E então, amor, como foi o dia?
— Agitado... cobri umas três ocorrências. Duas mortes.
— Aquela gangue saiu matando de novo? Gente, quando é que vocês vão conseguir prendê-los?
— Não, dessa vez não foram eles. Houve um latrocínio num bairro afastado e o outro foi um senhor que morava naquele prédio de tijolinhos e três andares do centro, sabe qual é? Pescoço quebrado, lesão seguida de morte. Ah, esse último caso... sabe o tipo de coisa mais aleatória que se pode imaginar? Então...
— O que aconteceu?
— Bem, a mulher que mora no segundo andar ouviu, enquanto subia as escadas do prédio, uma discussão entre o marido dela e uma moça de um dos apartamentos do terceiro. Descobriu no meio da conversa que eles tiveram um caso. Ao receber uma notícia como essa desse jeito, ficou chocada demais, desmaiou e caiu da escada. O marido dela ouviu o barulho, foi ver o que tinha acontecido e encontrou a esposa lá, esparramada. O cara entrou em desespero, não sabia o que fazer, começou a pedir ajuda... resolveu entrar no apartamento da frente pra ver se alguém podia fazer algo.
— E... ?
— Entrando no apartamento da frente, o cara encontrou o próprio filho aos beijos com o vizinho no sofá.
— Sério???
— Sim... aí ele esqueceu completamente o que tinha ido fazer, é muito conservador nesse sentido, ficou cego de ódio. Saiu procurando ao redor a coisa mais pesada que pudesse atirar nos dois e encontrou uma vitrola.
— Tá, mas quem morreu não foi um senhor?
— Pois então. Quando arremessou a vitrola na direção do filho e do outro homem, acabou mirando mal e a vitrola voou pela janela. O senhor tinha acabado de por a cabeça pra fora da janela do próprio apartamento, no primeiro andar, pra reclamar do escândalo que os vizinhos faziam lá em cima. Mal abriu a boca, a vitrola veio com tudo e o calou pra sempre. O que tem pro jantar?

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

a(s)cender - I

O que nos move como homens é a busca pelo calor em seus mais variados tipos. Existe em nós uma chama cujo desejo cada vez maior é se expandir, alastrar e dominar tudo. O fogo é o atalho, o modo mais eficaz.

Recuperou o isqueiro depois de muito tempo e planejamento, o velho isqueiro que ganhara de uma amiga anos atrás. Os infelizes que o haviam recolhido fizeram um péssimo trabalho em cuidá-lo: o que antes era uma superfície metálica lisa e espelhada agora exibia um longo e profundo risco em diagonal que começava na tampa e ia descendo por toda a extensão do corpo até a base. Um doloroso arrepio percorria a espinha do jovem sempre que via a maldita marca. Ele procurava o próprio reflexo na lateral do isqueiro, como se pudesse ver mais uma vez a antiga imagem, íntegra, intocada, viva, nova. Não obstante, encontrava um rosto magro, pálido e doente, olhos caídos e uma longa cicatriz em diagonal.

O calor sempre lhe pareceu irresistível. Calor dos braços da mãe, das coxas das poucas mulheres com as quais se deitou, dos dias que encerram dezembro - o sol lancinante das 15 horas que se espalha sobre tudo como um incêndio. As idas à casa do avô se resumiam a um banco em frente ao fogão à lenha. Permanecia sentado por horas, a madeira crepitando, morosa.

Nas últimas semanas que precederam o grande feito, se isolou em seu quarto. Porta e janela fechadas, luz apagada, computador tocando músicas sobre entorpecimento confortável e diamantes loucos. Deitado na cama, tirava o amigo isqueiro de um bolso, o cigarro de outro, acendia e tragava demoradamente. Os olhos acompanhavam as voltas lentas e preguiçosas que o ventilador de teto dava em torno do próprio eixo, como numa hipnose, enquanto o som se despejava em seus ouvidos, tomando conta de sua mente. O corpo, notavelmente febril, ia absorvendo mais e mais calor a cada tragada e se tornando leve como um balão. Do lado de fora, o mundo continuava o mesmo: gente comendo, dormindo, fodendo, brigando, amando, odiando, se ajudando, fugindo, encontrando, criando, destruindo, decompondo, lembrando, esquecendo, agindo, se omitindo, comemorando, se arrependendo e morrendo por fim. O eterno correr em direção a qualquer coisa que ninguém sabe bem o que é e, na verdade, jamais saberá. Nada disso tinha mesmo importância do lado de dentro. Os gritos, ouvidos por anos, as consecutivas desventuras que vivera, as esperanças fragilizadas como um castelo de cartas exposto a um breve suspiro. Nada realmente era considerado do lado de dentro. Aquecido, o homem e seu universo se expandiam.

Preso agora em outro quarto, um branco, só esperava o momento certo para por fim à situação inconcebível na qual se encontrava. Uma vontade maior, pura e justa, uma medida de segurança e a clausura: por que punição quando ele só queria fazer um favor aos homens? Quando pretendia apenas livrar aquela criança dos males que lhe eram impostos? A mente humana, sempre incompreensível... tornou a encarar o isqueiro e buscar seu rosto nele. Ignorou o risco e encontrou os próprios olhos, muito abertos, vivos, ardendo. Já era hora de brilhar.