terça-feira, 1 de janeiro de 2013

a(s)cender - I

O que nos move como homens é a busca pelo calor em seus mais variados tipos. Existe em nós uma chama cujo desejo cada vez maior é se expandir, alastrar e dominar tudo. O fogo é o atalho, o modo mais eficaz.

Recuperou o isqueiro depois de muito tempo e planejamento, o velho isqueiro que ganhara de uma amiga anos atrás. Os infelizes que o haviam recolhido fizeram um péssimo trabalho em cuidá-lo: o que antes era uma superfície metálica lisa e espelhada agora exibia um longo e profundo risco em diagonal que começava na tampa e ia descendo por toda a extensão do corpo até a base. Um doloroso arrepio percorria a espinha do jovem sempre que via a maldita marca. Ele procurava o próprio reflexo na lateral do isqueiro, como se pudesse ver mais uma vez a antiga imagem, íntegra, intocada, viva, nova. Não obstante, encontrava um rosto magro, pálido e doente, olhos caídos e uma longa cicatriz em diagonal.

O calor sempre lhe pareceu irresistível. Calor dos braços da mãe, das coxas das poucas mulheres com as quais se deitou, dos dias que encerram dezembro - o sol lancinante das 15 horas que se espalha sobre tudo como um incêndio. As idas à casa do avô se resumiam a um banco em frente ao fogão à lenha. Permanecia sentado por horas, a madeira crepitando, morosa.

Nas últimas semanas que precederam o grande feito, se isolou em seu quarto. Porta e janela fechadas, luz apagada, computador tocando músicas sobre entorpecimento confortável e diamantes loucos. Deitado na cama, tirava o amigo isqueiro de um bolso, o cigarro de outro, acendia e tragava demoradamente. Os olhos acompanhavam as voltas lentas e preguiçosas que o ventilador de teto dava em torno do próprio eixo, como numa hipnose, enquanto o som se despejava em seus ouvidos, tomando conta de sua mente. O corpo, notavelmente febril, ia absorvendo mais e mais calor a cada tragada e se tornando leve como um balão. Do lado de fora, o mundo continuava o mesmo: gente comendo, dormindo, fodendo, brigando, amando, odiando, se ajudando, fugindo, encontrando, criando, destruindo, decompondo, lembrando, esquecendo, agindo, se omitindo, comemorando, se arrependendo e morrendo por fim. O eterno correr em direção a qualquer coisa que ninguém sabe bem o que é e, na verdade, jamais saberá. Nada disso tinha mesmo importância do lado de dentro. Os gritos, ouvidos por anos, as consecutivas desventuras que vivera, as esperanças fragilizadas como um castelo de cartas exposto a um breve suspiro. Nada realmente era considerado do lado de dentro. Aquecido, o homem e seu universo se expandiam.

Preso agora em outro quarto, um branco, só esperava o momento certo para por fim à situação inconcebível na qual se encontrava. Uma vontade maior, pura e justa, uma medida de segurança e a clausura: por que punição quando ele só queria fazer um favor aos homens? Quando pretendia apenas livrar aquela criança dos males que lhe eram impostos? A mente humana, sempre incompreensível... tornou a encarar o isqueiro e buscar seu rosto nele. Ignorou o risco e encontrou os próprios olhos, muito abertos, vivos, ardendo. Já era hora de brilhar.

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