sábado, 22 de outubro de 2011

Mal-assombrado

Num instante que diluía profunda reflexão a um estado de vigília, me vi naquela sala enorme e mal iluminada. As paredes eram de um vermelho escarlate opaco, sujo, desbotado pelo que pareciam anos de abandono. Poderia, mesmo com a insuficiência de luz, afirmar que elas já tinham recebido algumas demãos de tinta sobre a cobertura original, dadas as marcas de pincel aqui e ali, as variações de intensidade... ainda sim, não me interessei por verificar. Sem quadros, sem janelas, sem coisa alguma. Eu estava sentada numa cadeira muito firme, mas pouco confortável, sem braços e com o encosto pouco acima da metade de minhas costas. À esquerda, uma grande porta com arabescos em alto-relevo que deduzi ser a de acesso à área externa, talvez uma varanda ou jardim; à frente, uma escada lateral morria no segundo andar; um portal em forma de arco e preenchido por escuridão ocupava a parede direita. Alguns móveis se espalhavam pelos cantos, mesinhas de centro em sua maioria, todas quebradas. Demorei a notar e me espantei ao ver, contrastando com o ar de deterioração daquele espaço, o piano no meio da sala. Novo, limpo, preto, as teclas reluziriam com um pouco mais de claridade. Quis tocar uma canção que desse vida ao ambiente, mas não sabia nada mais que o dó-ré-mi-fá. Levantei-me para explorar.

A pouca luz da sala me seguia por onde quer que eu fosse como uma lâmpada fraca e flutuante. À medida que me aproximava das paredes e móveis, percebia com maior nitidez sua ruina. Marcas profundas na madeira e cupins se intercalavam às grossas camadas de pó. Cascas de tinta sairiam na minha mão se eu puxasse. O piano, entretanto, era tão absolutamente impecável que qualquer um diria que tinha sido posto ali há não mais de uma hora e por engano. O piso de tacos rangia suavemente e era áspero aos passos. Continuei caminhando relutante, tentando decidir se ia até o próximo patamar ou mergulhava na escuridão - a ideia de ir embora jamais me ocorrera. Meu medo de escuro falou mais alto; subi as escadas.

Um grande corredor no topo dos degraus com várias portas em sua extensão se assemelhava a um hotel. As paredes ainda eram do mesmo escarlate envelhecido, mas alguns castiçais vazios se distribuíam ao longo delas. Um arrepio transpassou minha espinha: o piano no primeiro andar agora tocava sozinho - ou não, não desceria para saber se alguém o tocava - uma melodia lenta, nem assustadora nem agradável. O corredor não tinha fim. Não que fosse longo demais, realmente não terminava. Certifiquei-me disso ao caminhar através dele por algum tempo. As portas cor de mogno eram bem semelhantes entre si, lisas e comuns, com exceção de uma delas. Sombria, tinha arabescos como a porta de entrada, mas em baixo-relevo, um olho mágico contornado por ouro velho e nenhuma maçaneta ou fechadura. Essa diferença em relação às outras me atraiu como um ímã. Não precisei empurrar, ela se abriu sozinha.

O piano trocou sua trilha sonora: dele jorrava agora uma música profundamente triste e depressiva, ao mesmo tempo que acolhedora, agitando e aquecendo em mim algo que parecia morto há tempos. Estaquei. A luz que flutuava sobre minha cabeça moveu-se à frente, como se outro alvo quisesse fazer-se ver. Pude então distinguir um vulto a um canto que ia se transformando em "coisa" com o aproximar da luminosidade. Não demorou muito e identifiquei um alto e magro fantasma. Seu corpo ou o que quer que compusesse sua não-matéria era de um azulado semitransparente. Manter os olhos sobre ele era insuportável, não por ser feio ou digno de medo, mas por não ter um aspecto real, concebível. Mesmo assim, seu interior - talvez seu coração - brilhava em tons de laranja. Me sentia capaz de abraçá-lo, aquecê-lo, entranhar-me em seu peito e desaparecer. A questão é que a falsidade no resto daquela figura era absurda e me afastava. Permaneci nesse estado de atração e repulsão por um período incalculável e não me lembro de ter saído dali. Só sei que estava fora daquela casa sinistra, das instalações do meu coração.