segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Namorados no sofá

— Que música é essa? 
— Hm... acho que é aquela cantora meio louca, uma canadense...
— Eu sei que é Alanis, sei que música é.
— Por que pergunta se sabe?
— É que... não, nada.
— Tá, agora vem aqui - ele disse, e lançou o sorriso de alguém que sabe muito sobre o mundo enquanto voltava a beijá-la.
— Não, espera.
— ... o que foi...
— A gente não pode namorar ouvindo Alanis.
— Por quê?
— Tá ouvindo isso? Tá tocando You Oughta Know!
— E?
— E aí que você vai me trocar por uma mulher mais nova e ficar de obscenidades com ela num teatro.
— Essa é a coisa mais absurda que eu já ouvi.
— Muda isso, por favor, vai.
— Ok... — se levantou, deu avançar no reprodutor de músicas e voltou ao afazer que lhe interessava no sofá.
— November Rain? Sério?
 E agora, qual é o problema? Estarmos em setembro? Quer que eu bote Wake Me Up When September Ends?
— Por que? Tá tão ruim pra você que prefere dormir por todo setembro?
— Escuta isso, olha esse solo, essa letra... "Eu poderia descansar minha cabeça sabendo que você foi minha."
— É, e depois um "porque nada dura pra sempre, nem mesmo a chuva fria de novembro". 
— É só uma música, mulher.
— Não quero, tira isso.
— Diz o que você quer, tenho Legião...
— Sim, e aí a gente corta os pulsos juntos depois.
— Smiths.
— Não quero morrer num ônibus de dois andares! Tira essa ideia de morte da sua cabeça, que coisa!
— Cazuza.
— Que bom que você não vai me largar por uma mulher mas por um homem...
— Bob Dylan.
— Muito velho.
— The Doors.
— O Jim Morrison parecia um psicopata, não.
— Beatles.
— Vai me trocar por uma piranha chinesa?
— Ela é japonesa.
— Tá sabendo demais, heim, conheceu alguma por aí? Gostou? Vai, vai lá ficar com essa umazinha de qualquer buraco da Ásia.
— Já sei a música perfeita pra você — se levantou pela última vez, fez a seleção e foi embora da sala enquanto Depeche Mode começava as primeiras notas de Enjoy The Silence.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Causalidades

Um prédio de tijolinhos, três andares, uma graça, dava algum ar de doce simplicidade à cidade cheia de edifícios de andares mil e suas vidraças espelhadas. Havia dois apartamentos por andar.


1º andar:
101 — Um velho senhor, uns oitenta anos, passava o dia lendo o jornal e tentando sintonizar qualquer frequência no seu pequeno rádio de pilha. Quando não fazia nenhuma das duas coisas, dormia na poltrona de couro da sala ou reclamava do barulho dos vizinhos.
102 — vazio.


2º andar:
201 — Uma família: pai, mãe e três filhos: um bebê de colo, uma menina de uns três anos e um rapaz de dezesseis. A mãe saía pra trabalhar bem cedo. O filho mais velho saía uma hora depois da mãe, provavelmente indo para a escola; voltava na hora do almoço, deixava a mochila, trocava de roupa e saía novamente. O pai cuidava da casa e das duas crianças durante todo o dia, exceto em determinado horário, quando pegava o celular e fazia insistentes ligações. Parecia exausto e tossia o tempo todo.
202 — Duas irmãs gêmeas, em torno dos cinquenta anos, sempre vestidas iguais, de preto. A sala do apartamento delas se resumia a uma cristaleira vazia, um sofá puído, uma televisão, um altar e duas cadeiras de balanço que, com alguma frequência, colocavam no corredor do andar. Quando resolviam ir para o lado de fora, ficavam remendando um pano qualquer e conversando sobre a vida dos moradores.


3º andar:
301 — Um homem jovem, vinte e cinco anos, bonito, atlético. Parecia ter dinheiro, o apartamento era muito bem mobiliado. Gostava de tomar uísque e ouvir Ella Fitzgerald em uma vitrola muito antiga enquanto não recebia outros homens em seu quarto.
302 — Uma mulher de uns trinta anos, média estatura, muito magra e com longos cabelos dolorosamente lisos, desgrenhados e vermelhos. Sempre usava algum vestido longo, sem mangas e de tecido leve. Dificilmente dormia. Passava dia e noite martelando o teclado do computador, fumando e procurando livros numa estante bastante comprida na parede da porta de entrada. Deveria ser escritora ou algo do gênero. Todo dia o seu telefone tocava, ela atendia aos berros, despejava meia dúzia de ofensas bem específicas a quem quer que estivesse do outro lado da linha, unidas a um grito claro: "Não me ligue mais!".

***

A mãe do 201 chegou mais cedo ao prédio. Escutou de longe o senhor do 101 roncando alto. Foi subindo a escadaria e começou a ouvir o choro dos dois filhos menores. Acelerou o passo, entrou correndo em casa e encontrou o bebê no berço, com fome, e a menina sentada no chão logo ao lado, irritada e gritando pelo escândalo do irmãozinho. Ao passar em frente à porta que esquecera aberta, enquanto procurava o pai — sem sucesso , escutou a voz rouca e desagradável das gêmeas, quase em coro:

— Seu marido? Subiu as escadas agora a pouco, parecia aflito, agoniado...

Dirigiu-se ao próximo andar e estacou no último degrau ao reconhecer a voz do marido numa discussão.

***

— Já disse pra não me procurar! 
— Disse pra não te ligar mais.
— Se não quero que me ligue, quero muito menos que venha me perturbar na minha própria casa!
— Por favor, Helena...
— Vai embora.
— Eu te amo! Te amo, amo tanto, não consigo mais ficar longe de você.
— O que eu preciso fazer pra que você me deixe em paz? Não consigo escrever, meu cigarro tá apagando e a culpa é sua.
— Volta pra mim, Helena.
— Pelo amor de Deus, você é casado, não precisa de mim pra nada.
— Preciso de você até pra respirar! Não aguento mais aquela casa, aquela mulher insossa, não reconheço meus filhos. Eu tô doente, Helena, e você é minha luz.
— Para de dizer bobag-- que barulho foi esse?
— É como se algo tivesse rolado escada abaixo.

***

Tomou um grande gole de uísque e voltou a se concentrar na boca daquele que tanto ansiava. Seus lábios, agora ainda mais quentes, se desesperavam em explorar cada pedaço de pele como se tentassem absorver sangue e alma. Estava tão absorto no jazz macio que era derramado da vitrola, assim como no desejo que enlevava seu corpo, que não ouviu a briga no apartamento da frente, tampouco o baque na escada. Só voltou ao mundo real quando seu pai abriu a porta assustado, buscando ajuda, e o flagrou com o vizinho do 301.

***

— E então, amor, como foi o dia?
— Agitado... cobri umas três ocorrências. Duas mortes.
— Aquela gangue saiu matando de novo? Gente, quando é que vocês vão conseguir prendê-los?
— Não, dessa vez não foram eles. Houve um latrocínio num bairro afastado e o outro foi um senhor que morava naquele prédio de tijolinhos e três andares do centro, sabe qual é? Pescoço quebrado, lesão seguida de morte. Ah, esse último caso... sabe o tipo de coisa mais aleatória que se pode imaginar? Então...
— O que aconteceu?
— Bem, a mulher que mora no segundo andar ouviu, enquanto subia as escadas do prédio, uma discussão entre o marido dela e uma moça de um dos apartamentos do terceiro. Descobriu no meio da conversa que eles tiveram um caso. Ao receber uma notícia como essa desse jeito, ficou chocada demais, desmaiou e caiu da escada. O marido dela ouviu o barulho, foi ver o que tinha acontecido e encontrou a esposa lá, esparramada. O cara entrou em desespero, não sabia o que fazer, começou a pedir ajuda... resolveu entrar no apartamento da frente pra ver se alguém podia fazer algo.
— E... ?
— Entrando no apartamento da frente, o cara encontrou o próprio filho aos beijos com o vizinho no sofá.
— Sério???
— Sim... aí ele esqueceu completamente o que tinha ido fazer, é muito conservador nesse sentido, ficou cego de ódio. Saiu procurando ao redor a coisa mais pesada que pudesse atirar nos dois e encontrou uma vitrola.
— Tá, mas quem morreu não foi um senhor?
— Pois então. Quando arremessou a vitrola na direção do filho e do outro homem, acabou mirando mal e a vitrola voou pela janela. O senhor tinha acabado de por a cabeça pra fora da janela do próprio apartamento, no primeiro andar, pra reclamar do escândalo que os vizinhos faziam lá em cima. Mal abriu a boca, a vitrola veio com tudo e o calou pra sempre. O que tem pro jantar?

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

a(s)cender - I

O que nos move como homens é a busca pelo calor em seus mais variados tipos. Existe em nós uma chama cujo desejo cada vez maior é se expandir, alastrar e dominar tudo. O fogo é o atalho, o modo mais eficaz.

Recuperou o isqueiro depois de muito tempo e planejamento, o velho isqueiro que ganhara de uma amiga anos atrás. Os infelizes que o haviam recolhido fizeram um péssimo trabalho em cuidá-lo: o que antes era uma superfície metálica lisa e espelhada agora exibia um longo e profundo risco em diagonal que começava na tampa e ia descendo por toda a extensão do corpo até a base. Um doloroso arrepio percorria a espinha do jovem sempre que via a maldita marca. Ele procurava o próprio reflexo na lateral do isqueiro, como se pudesse ver mais uma vez a antiga imagem, íntegra, intocada, viva, nova. Não obstante, encontrava um rosto magro, pálido e doente, olhos caídos e uma longa cicatriz em diagonal.

O calor sempre lhe pareceu irresistível. Calor dos braços da mãe, das coxas das poucas mulheres com as quais se deitou, dos dias que encerram dezembro - o sol lancinante das 15 horas que se espalha sobre tudo como um incêndio. As idas à casa do avô se resumiam a um banco em frente ao fogão à lenha. Permanecia sentado por horas, a madeira crepitando, morosa.

Nas últimas semanas que precederam o grande feito, se isolou em seu quarto. Porta e janela fechadas, luz apagada, computador tocando músicas sobre entorpecimento confortável e diamantes loucos. Deitado na cama, tirava o amigo isqueiro de um bolso, o cigarro de outro, acendia e tragava demoradamente. Os olhos acompanhavam as voltas lentas e preguiçosas que o ventilador de teto dava em torno do próprio eixo, como numa hipnose, enquanto o som se despejava em seus ouvidos, tomando conta de sua mente. O corpo, notavelmente febril, ia absorvendo mais e mais calor a cada tragada e se tornando leve como um balão. Do lado de fora, o mundo continuava o mesmo: gente comendo, dormindo, fodendo, brigando, amando, odiando, se ajudando, fugindo, encontrando, criando, destruindo, decompondo, lembrando, esquecendo, agindo, se omitindo, comemorando, se arrependendo e morrendo por fim. O eterno correr em direção a qualquer coisa que ninguém sabe bem o que é e, na verdade, jamais saberá. Nada disso tinha mesmo importância do lado de dentro. Os gritos, ouvidos por anos, as consecutivas desventuras que vivera, as esperanças fragilizadas como um castelo de cartas exposto a um breve suspiro. Nada realmente era considerado do lado de dentro. Aquecido, o homem e seu universo se expandiam.

Preso agora em outro quarto, um branco, só esperava o momento certo para por fim à situação inconcebível na qual se encontrava. Uma vontade maior, pura e justa, uma medida de segurança e a clausura: por que punição quando ele só queria fazer um favor aos homens? Quando pretendia apenas livrar aquela criança dos males que lhe eram impostos? A mente humana, sempre incompreensível... tornou a encarar o isqueiro e buscar seu rosto nele. Ignorou o risco e encontrou os próprios olhos, muito abertos, vivos, ardendo. Já era hora de brilhar.