domingo, 21 de agosto de 2011

Secreto



Meu quarto é o mesmo há dezenove anos. Bem, alguns móveis mudaram, a janela de correr com metal e vidro foi trocada por uma de madeira e venezianas, as paredes brancas cederam lugar a um lilás enjoativo. Fora isso, a disposição das coisas foi quase sempre a mesma, principalmente pela cômoda de puxadores antigos na parede oposta à porta. Não ouso mudá-la de lugar.

Com nove ou dez anos, tempos de tinta branca, eu tinha sempre o mesmo sonho: me levantava da cama, ia em direção à cômoda e notava que seu lado direito havia sido levemente arrastado para frente. Resolvia olhar o espaço a mais criado entre o móvel e a parede e encontrava um buraco recoberto por pedaços de papelão, grande o suficiente para que eu passasse. E passava correndo. No lado oposto descobria uma imensidão plana com capim fino, baixo, verde e novo. Ousaria dizer, sem muita certeza, que a terra exalava cheiro de uma chuva que poderia ter caído há três ou quatro horas, mesmo que não houvesse rastro de água em qualquer canto. E então já não tenho certeza se era capim ou um monte de flores do campo, amarelas e vívidas. O sol brilhava intenso, o céu era de um azul que presenciei poucas vezes, tão vivo! Uma ou outra nuvem se espalhava como pedaços finos de algodão. Nesses desencontros e insanidades de sonho, de repente, me via e estava, como se duas de mim existissem por ali, sentada no capim-que-era-flor, as costas apoiadas no tronco grosso e escuro de uma árvore altíssima, tão alta que não se via a copa, mas a sombra larga e fresca produzida por ela. Fechava os olhos, me via fechando os olhos - era enlevada por uma paz extraordinária, que não cabia em mim, nem naquela planície ou em todo o universo. Acordava em estado de tranquila felicidade e estranhava a situação. Eu, criança muito ativa, arteira, que vivia correndo por todos os lados, cantando e gritando, não era capaz de conceber a possibilidade de uma alegria gerada por calma, silêncio ou descanso. Ainda sim, ficava satisfeita pelo sonho e dormia esperando acordar e encontrar o buraco atrás da cômoda de puxadores antigos.

Os sonhos de hoje são meras manifestações do cotidiano. Não há mais surpresa, experiências inusitadas ou qualquer coisa que me deixe naquela contemplação. E o que mais queria era visitar campo, flores, céu e árvore uma última vez.