domingo, 8 de julho de 2012

Confissão


Se lhe pareço fria, tenha certeza: eu sou. Como qualquer pessoa com qualquer ausência, a minha maior é dessa chama que unge a fala e os menores movimentos de tipos que muito me impressionam. Me falta esse tato nas relações, esse jeito de lidar com o mundo como quem acolhe o inesperado. Não sou hábil em me atrelar às nuances que a mim são expostas. Acomodo-me, então, à poída poltrona daquilo que é cômodo, distante dos demais. Me moldo aos gestos rápidos, superficiais, boio num lago raso e sombrio. 

Se lhe pareço fria, não se engane: preciso, mais do que todas as coisas, de calor. Qualquer ser arrefecido se esgueira por entre o soturno em busca do claro, do quente. Ao frio é possível se acostumar, mas, como ouvi em algum lugar, se acostumar não significa gostar de algo. Longe disso. E se sopro um vento frio de indiferença, saiba, não espero menos que um abraço cálido.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Periódico

I - A casa que um dia fora azul

Ficava no fim da rua sem saída a casinha que um dia fora azul. O muro baixo que cobria a frente, sem sucesso, recoberto por violeteiras secas; o portão de grade velha e retorcida; uma perdida cadeira de balanço de ferro; o quintalzinho de uns cinco passos de comprimento, com terra batida à esquerda e à direita e um caminho de pedras soltas, marmóreas e esverdeadas em direção à porta; uma tábua que pendia do telhado, presa por um arame, oscilando ao sabor do vento em frente à maior das janelas. O resto: entulho, capim e um grande vazio.

II - Quem vivia na casa que um dia fora azul?

A senhorinha que vivia na casa que um dia fora azul morava ali havia tempo, talvez a mais antiga residente do bairro. Bastante velha, coluna bastante curva, cabelos bastante brancos e olhos bastante vivos, de um âmbar carregado, que espreitavam diariamente o movimento da rua pelas grades do portão como quem espera uma visita atrasada em demasia. Não passeava pela rua, não recebia cartas, tampouco guardava a cadeira de balanço nos dias de chuva. Ninguém sabia seu nome e nem precisava: era apenas a senhorinha da casa que um dia fora azul.

III - Os hábitos da senhorinha

Não se via movimento na casa que um dia fora azul. Bem, pelo menos durante a manhã e primeiras horas da tarde. O processo de inquietação se iniciava normalmente às 15h. A senhorinha desfilava incontáveis vezes pelas janelas – muito grandes e sempre abertas, diferentemente da porta de entrada, oferecendo aos olhos de qualquer um quase tudo que se passava no interior da casa –, desenvolvendo o tempo todo alguma tarefa, normalmente na seguinte ordem:
  1. Batia insuficientemente os tapetes grossos e sujos, cujo pó parecia infinito;
  2. Acendia uma das bocas do fogão e colocava sobre ela um bule amassado;
  3. Regava abundantemente os vasinhos de flores espalhados pelos cômodos (ainda que todas elas já aparentassem morte antiga por excesso de água);
  4. Via a água das plantas e se lembrava de encher o bule - voltava à cozinha;
  5. Nivelava um quadro na parede da sala de estar que sempre voltava a pender para um lado e, toda vez que se inclinava, transformava o sorriso doce e efusivo da menina retratada na pintura num risco torto e perturbador;
  6. Ligava a vitrola, o mesmo disco todos os dias, uma seleção de Sinatra;
  7. Entrava no que deveria ser seu quarto - sem janelas, por favor - e voltava alguns minutos depois, cabelos presos, vestido que um dia fora branco, colar de pérolas, talvez sapatos de salto, considerando o toc-toc oco no chão;
  8. Se concentrando na cozinha, passava o café - e o cheiro se espalhava, intenso, pelo ar;
  9. Buscava uma lata de biscoitos numa prateleira baixa do armário e um par de xícaras;
  10. Dispunha o café recém-passado, os biscoitos e as xícaras sobre a mesinha redonda;
  11. Se sentava num banquinho de madeira;
  12. E, finalmente, esperava, observando um relógio parado ao lado do armário. Ah, a espera... lugar comum.
IV - 

A cena se repetia todos os dias sem grandes alterações. Três, quatro horas depois, talvez cansada de esperar dentro da casa, a senhorinha saía e caminhava lentamente em direção ao portão, olhos muito abertos. Segurava as grades e espiava demoradamente. Ao longe, o disco arranhado, preso na vitrola, soava como um alarme: a senhorinha apalpava os bolsos até retirar de um deles um pedaço amarelado de papel. Abria, lia e remoía antigas conclusões. A carta era dobrada e voltava ao bolso; a senhorinha esboçava um sorriso qualquer, confuso, e voltava por onde tinha vindo; a tábua que pendia do telhado e a cadeira de balanço dançavam juntas, na cadência do disco arranhado. E o amanhã seria igual na casa que um dia fora azul.