domingo, 5 de janeiro de 2014

Disforme

Esse texto foi escrito há quase três anos por uma
razão especial; razão superada, sinto que é hora de
deixá-lo livre.
Um grande pedaço de nada era como se sentia. Uma fonte infindável de defeitos. Como pôde nascer assim, reunindo tanto desagrado, tanta assimetria? Sua profunda infelicidade mora nisso, sabe que é essa a razão de tudo e, também, como poderia ser feliz e satisfeita se, ao encarar o espelho, não encontra absolutamente nada aprazível? Sente que poderia atravessar horas e horas listando todas as imperfeições desse estúpido corpo que recebeu por obra divina, forças desconhecidas ou genes escolhidos do modo mais repugnante possível.

Haveria forma mais indigna do que os contornos daquela face? Tão redonda e gigante que poderia se confundir com um planeta qualquer. E as bochechas? Enormes! Sente-se uma criança com obesidade mórbida, não há delicadeza ou feminilidade numa cara de lua dessas. Queria um daqueles rostos angulosos, um longo e fino nariz, maçãs salientes e bochechas bem secas e côncavas. Nada de expressão frágil, boas são as que exalam sensualidade em suas feições, não pureza infantil. O rosto é gordo, os braços são gordos, a barriga é tão gorda, as pernas são gordas e se atritam ao caminhar. Acredita que, perdendo 10 quilos, alcançará seu grande ideal estético: face magra, braços delgados - uma fina camada de pele a circundar os ossos - coxas finas, costelas saltadas. Essa é a meta: 10 quilos, uma enorme diferença entre uma pessoa incrivelmente gorda e uma com beleza passível de perfeição.

Ela se expõe, se submete ao julgamento alheio, mas não escuta dos outros o mesmo que diz a si mesma. Pelo contrário, chega a ser assustadora a quantidade de admiradores que ela tem por aí, ouve o que qualquer uma adoraria ouvir, recebe infinitos elogios de quem realmente parece ser honesto no que afirma. E não só no que diz respeito à inteligência ou dons artísticos - coisas que transbordam em seu âmago -, mas também sobre sua aparência. Porém, obviamente, ela ignora; minto, não o faz porque, se ignorasse, não se sujeitaria a avaliação. Ela finge ignorar por não ser capaz de apreender aquelas opiniões e refleti-las em seu próprio eu. Adora as qualidades que lhe são atribuídas, pode até se alegrar por um momento ou dois, mas logo esquece. 

Acorda diariamente e tem a necessidade de ser amada e desejada - o que todas sentem, convenhamos. Procura nos homens a autoestima que lhe falta, uma segurança tão exacerbada que possa ser extraída em vidrinhos e tomada ao longo da vida em grandes goles. Barganha um calor no peito por opiniões que já não são tão positivas, mas cheias de apontamentos distorcidos, tristes, de quem conhece uma pessoa superficialmente e se encontra longe de mergulhar na profundidade do que é ser. Se submete agora a quem lhe distrai e faz sentir um pouquinho melhor em relação às definições que sempre fez de si. Melhor fisicamente, claro, porque psicologicamente não se vê muito mais que prédios a desmoronar.

O mais lamentável disso tudo é a venda nos olhos da alma: se abre para quem é oco e se fecha para a janela de oportunidades bem a sua frente. Se isola da verdade, dos que oferecem sentimento verdadeiro e desinteressado, se oferece ao desconhecido. Não enxerga a própria grandeza.

E sempre volta à miséria da auto-depreciação...

Um comentário:

  1. Disforme é uma regra, não uma exceção. After all, creio que cada insignificante humano que vaga por aí e tenha uma veiazinha (ainda que capilar) de escrita - claro que guardadas as devidas proporções e qualidades - escreveria algo semelhante, apontando para a mesma direção. E não vejo isso como algo ruim: acho que quando alguém traz à tona essa catarse e consegue representar a alma e a angústia humana de maneira tão abrangente, é porque seu objetivo foi alcançado. O leitor carece disso, de identificação. Não é à toa que García Marquéz, tão difícil quanto, é mais lido que Fiódor por todos nós.

    E não creio que seja "miséria da auto-depreciação". Ora, ela é nosso motorzinho ininterrupto para construção de laços e faz as vezes de lente para selecionar quem mergulha no "ser" e quem passa adiante como brisa fresca num tosco verão.

    Confissão de leitor: inveja boa de querer ter escrito essa jóia. Parabéns...

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