quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Mocassins

Parados no ponto de ônibus estávamos eu - já sem esperanças sobre a vinda de minha condução e um tanto apreensiva quanto a figura do elemento ali presente - e um mendigo, desses com cara de velho fugido do hospício, além, é claro, das roupas e sujeira típicas. Ele não se parecia com um psicopata ou bandido procurado, mas tinha aquele olhar pesado, fixo, de gente que assistiu todo tipo de sofrimento e se largou sob a vida, inerte. Eis que o maltrapilho, antes sentado em jornais amarelados espalhados pela calçada, levantou-se e sentou-se ao meu lado no abrigo, se esforçando para emprestar ao rosto enrugado ar cortês e imponente. Antes que o assombro, medo ou outro sentimento comum me assolasse, o velho disparou a falar de um caso antigo.

Dizia ele que, logo que se mudara para as ruas - a teoria sobre o hospício se fazia mais sólida -, começara a sentir uma dor insuportável na nuca, "bem nesses carocinhos, sabe?", o mendigo apontava atrás da cabeça, onde terminava sua cabeleira branca e gordurosa. O sofrimento físico o impossibilitara de erguer o rosto por um bom tempo. Como os olhos só alcançavam uma área pequena, o velho passara a treiná-los de modo a reconhecer possíveis doadores de uma esmola generosa através dos sapatos. Postara-se na escadaria de uma grande igreja nas redondezas, "O povo é mais generoso quando precisa rezar um monte de terços, acham que dar dinheiro diminui a penitência", afirmava com voz de conhecedor das fraquezas humanas. O velho contava que, em certa época, conseguira arrecadar quantia significativa para um mendigo só de estender a latinha para o par certo de pés. Normalmente se apegava mais aos sapatos masculinos bem lustrados, cadarço com nó milimetricamente bem feito, aos scarpins bicudíssimos das senhoras e aos saltos grossos e recobertos por tiras das moças de pés delicados e canelas lisinhas - notei aí uma ou outra risadinha no velho, as vistas deviam compensar até demais a limitação do pescoço. O mendigo não fazia questão de erguer a latinha para chinelos simples, pés rachados e sujos. Até escondia as moedas se via gente descalça ou de solas furadas, "Vai que é um ladrão safado?!".

Num dia de grande doação, algum feriado santo ou coisa do tipo, depois que todos já tinham ido embora, surgiu na frente do velho um belíssimo par de mocassins, couro legítimo, uma grande fivela de ouro na parte de cima. Pronto para ganhar mais uns trocados, o velho estendeu a mão e esperou. Os mocassins se demoraram e foram embora correndo, levando a latinha que tilintava.

Meu ônibus chegou e nele vim pensando na porção de ladrões de mocassim que já avistei por esses planaltos.