- Hoje, quatro de dezembro, 8h22min. Primeira gravação do dia. Paciente nº 0026. Bom dia, como vai?
- Acho engraçado perguntar a um número como ele está. Me sinto leve.
- Muito bem... como tem passado as noites?
- Mal, como sempre.
- Mesmo com os remédios que lhe receitei?
- Não tomo os remédios.
- ... por que não?
- Você estudou durante anos a mente humana em toda sua complexidade. Acredita mesmo que um comprimido seria capaz de dominar pensamentos?
- É um tratamento como outro qualquer. Agora, veja bem, estamos aqui hoje porque você escolheu se consultar, você escolheu se tratar. Essa vontade de alcançar absoluta sanidade partiu de você, o que já prova que algo é capaz de dominar seus devaneios. Os remédios são aliad...
- Aliados... você diz como se fossem meus amigos, ou melhor, como se fossem militantes numa guerra!
- Sim, não deixa de ser uma guerra.
- Guerras pressupõem ausência de vencedores e perdedores, doutor. Eu e minha mente não nos combatemos. Ela é líder, ditadora suprema, dona de mim. Sou o populacho sem voz, seguidor submisso, servo. Estou aqui hoje por puro capricho dela.
- ... pois bem, podemos começar?
- ...
- Por onde quiser.
- Viro as pessoas. Me transformo nelas. Qualquer uma, qualquer situação. Agora sou eu, depois... já nem sei quem sou, o que sou. Me levanto cedo, boto uns chinelos e vou pra padaria. Nem pego outra roupa porque durmo de camiseta e calça, pijamas são... não sei, organizados demais. No caminho, esbarro numa mulher que anda apressada pela calçada. Os papéis que ela carrega dentro de uma pasta voam por todo lado. E então sou ela, recolhendo os papéis, formulando ofensas pro homem que me esbarrou, caminhando com urgência. Meu celular toca, atendo e ouço meu chefe gritando, implorando pelos relatórios que fiquei de entregar, dizendo que me põe na rua se eu não chegar em dois minutos. Ouço o barulho oco dos meus saltos quadrados batendo no chão, clac-clac-clac-clac-CLAC, um dos saltos quebra, torço o pé, sinto cheiro de pão... e então sou eu de novo, na padaria, a atendente perguntando quantas colheres de açúcar quero no meu café. "Nenhuma", sempre respondo...
- Como isso acontece? Quero dizer, como você vive essa experiência? Como um narrador-observador?
- ... você me escuta? Eu me trans-for-mo nas pessoas. Vejo, cheiro, sinto como elas. Você acredita em espíritos, doutor?
- Possessões?
- Talvez... não nesse sentido que se usa por aí. Coisas malígnas. No de invadir, entrar. Mergulho em qualquer um e passo a pensar por ele...
- Pensar por ele ou como ele?
- Não tenho certeza.
- Continue.
- A mulher da pasta, dos relatórios, do salto quebrado. Meu pé não para de doer.
Eis uma habilidade que eu não tenho, talvez nunca terei, de construir diálogos tão bem feitos! As próprias falas foram construindo o que seria a narração, e deixou tudo palpável de uma maneira ímpar. Fora que o enredo é espetacularmente criativo, e me interessa demais. Aguardo pela continuação, masterpiece!
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