segunda-feira, 26 de julho de 2010

Trocado

Lá está ele em sua antiga estupidez de sempre. Poltrona rasgada, postura humilhante, caneca verde, sempre verde, café fraco, pão duro de um dia qualquer pela preguiça de sair e comprar algo de verdade para por na boca. Claro, porque ele quer mesmo é por na boca a boca dela, morder seus lábios como quem morre de fome, mas não abandona o prazer do atraso, das porções pequenas. Delicia-se tanto com o toque, com os movimentos suaves, com o roçar de narizes, cílios e mãos mais atrevidas que até se esquece que imagina tudo e que o pão velho não é aquela boca e que o calor da caneca de café não é a nuca de sua pequena. Ao despertar do devaneio ri-se todo, checa se não há algum espectador para suas sandices, toma outro gole do café doce como açúcar puro e pensa em outra coisa a se pensar.

Fica naquele teatro patético por séculos, perdendo o olhar pela parede e o tempo de descanso, de um livro, música ou passeio com os amigos. "Você sumiu!", "Por onde se meteu esse tempo todo?", "Ei, podemos sair essa tarde, ver um filme e...". A resposta, sempre a mesma: falta de tempo, desânimo, depois nós marcamos, tenho um compromisso. O compromisso, o grande compromisso com sua pequena. Ele costumava levá-la para comer alguma coisa, mas ele mesmo mal mastigava a própria comida; queria mais tempo para vê-la comendo, lenta como só ela, segurando copos e talheres com delicadeza inigualável e atritando os lábios após cada pouquinho de suco. Às vezes ele insistia que bebesse mais um pouco, um ou dois copos, só para rever o ritual. Depois saiam para caminhar, se sentavam em algum banco e ficavam conversando por horas e horas. Algumas vezes eram surpreendidos por uma chuva realmente inesperada, mas não se importavam e continuavam a conversa, encharcados da cabeça aos pés. Em outras, se falavam deitados sob um grande ipê amarelo. Ele aproveitava a desculpa de tirar pétalas que caiam nos cabelos dela para afagar-los demoradamente, como um pobre Bentinho que se deleita com os cabelos de sua Capitu. A lentidão intrigava a pequena, que se virava e o encarava com olhos de sermão mas, logo depois, abria um sorriso mais radiante que o sol poente entre nuvens alaranjadas que compunha o cenário. "Já é tarde, preciso ir.", a despedida se fazia à noite, numa ruazinha desconhecida e deserta. Por mais que devessem partir, atrasavam ao máximo o fim do dia, um segurando o braço do outro, inventando assuntos aleatórios que prolongassem a última conversa. E, então, a hora tão esperada chegava: sabe-se lá a razão, as mãos dos dois se esbarravam e não se soltavam mais. Os olhares se cruzavam, tímidos mas fixos, implorando pelo que viria. A mão dele que não se ocupava da dela tocava levemente seu rosto, têmporas, as covinhas que se formavam com o sorriso radiante; parava na nuca e, agora, segurava forte, medo de perder aquele instante tão valioso. Os perfumes se misturavam, as respirações se aproximavam, os olhinhos dela se fechavam apertadinhos, esperando pelo óbvio utópico.

Ele se assusta de repente com o barulho da caneca verde se quebrando no chão.

2 comentários:

  1. Nossa, tocou meu coração de pedra...A sensação de sonho Escapulido eh perfeitamente descrevida...Droga, fui sentimental.

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  2. E repito: metafísica pura, digno de Lygia Fagundes Telles :P

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